O legado moderado de um polemista

Na obra de José Guilherme Merquior é evidente a preferência pela conciliação das forças nos debates teóricos e políticos
José Guilherme Merquior por Ramon Muniz
01/12/2014

Segundo Antônio Carlos Secchin (em Memórias de um leitor de poesia), “um grande poeta não costuma deixar herdeiros, e sim imitadores. Abre mil portas, mas deixa todas trancadas quando vai embora”. Por outro lado, no caso dos mais destacados críticos e teóricos, esperamos que seus influenciados deem continuidade ao legado, ainda que seja apenas com divulgação e contribuições incrementais. Um eminente pensador que não deixa herdeiros — menos ou mais ciosos de originalidade — provoca sentimento de desperdício, como se parte dos grãos de uma safra formidável estivesse esquecida dentro de algum silo.

É o caso do diplomata, intelectual e ensaísta José Guilherme Merquior (1941-1991), que Antonio Candido definiu como um dos maiores críticos brasileiros, que combinava notavelmente “gosto fino, argúcia analítica, precisão de síntese e transfiguração reflexiva”, um pensador que “sabia desmontar a fatura dos textos sem os reduzir à mecânica formalista e inscrever as obras na sequência temporal sem deslizar para o esquema. Sobrevoando esses dons, a linguagem adequada, expressiva, cheia de flama, parecendo comunicar à página o ritmo trepidante que foi a sua vida de impetuosa dedicação às coisas mentais”.

Dez anos após sua morte, em artigo na Folha de S. Paulo, o cientista político André Singer se mostrou bem menos convicto sobre o papel que a história intelectual do Brasil reservaria a Merquior. O texto lembrou que o crítico chegou a ser considerado desde “a maior inteligência brasileira da segunda metade do século 20”, por Bruno Tolentino, até “talentoso porta-voz da direita”, segundo Marilena Chauí, ou mesmo “um aluno hiperaplicado”, como o poeta Nelson Ascher preferiu reduzi-lo.

Para além das opiniões mais admiradas ou carregadas de rancor, outros depoimentos ilustres poderiam ter sido compilados, ratificando as discrepâncias de julgamento e, naturalmente, sugerindo conclusão prévia: Merquior precisava ser estudado e refletido com lentes distanciadas e menos extremadas.

Passo fundamental para essa revisão crítica é a reedição dos seus livros, que começou em 2012, por iniciativa da É Realizações. Projeto editorial que não poderia estar em melhores mãos: João Cezar de Castro Rocha, coordenador da coleção, tem garantido que nenhuma demanda em redor comprometa a tarefa, zelando sobretudo pela escolha cuidadosa dos comentadores, cujas análises não recaem na valorização excessiva do Merquior polemista, tampouco se deixam levar pela tentação dos lugares-comuns, teia de preconceitos que tanto já atrapalhou sua fortuna crítica.

Embora seja balanço prematuro, as primeiras respostas é que podem ser consideradas desanimadoras, nem tanto pela insignificante atenção dedicada pela mídia, mas pela fragilidade de quase todas as resenhas veiculadas. Quase sempre movidos por redutoras e amareladas dicotomias, os resenhistas visitam clichês e lhes atualizam com igualmente toscas doses de incompreensão. Se antes Merquior sofreu com a hipermetropia de boa parte dos seus coetâneos, agora resta nas mãos de leitores com não menos danosa miopia política e cultural.

Polemista generoso
José Guilherme Merquior completou licenciatura em Filosofia e bacharelado em Direito ainda no Rio de Janeiro. Antes de chegar aos 40 anos, já se tornara Doutor em Letras pela Universidade de Paris e em Sociologia pela London School of Economics and Political Science. Aos 18, publicava no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, onde seu talento crítico e vocação polemista logo chamaram atenção. Era capaz de grandes entusiasmos, mas também não hesitava em fazer ressalvas ou elaborar críticas violentas sobre autores como Augusto Frederico Schmidt, Lêdo Ivo, Antonio Olinto, Mario Quintana e Thiago de Mello.

Nos anos 1980, travou alguns dos seus debates públicos mais conhecidos, ao chamar atenção para o excesso de parágrafos de Claude Lefort que Marilena Chauí utilizara em livro, sem os devidos créditos — acusação da qual ela se defendeu alegando intimidade intelectual e sentimental com o autor, além de sugerir que se tratava de uma batalha ideológica entre um crítico conservador e uma professora de esquerda. Vários amigos de Chauí tomaram as dores, entre eles o filósofo Roberto Romano, que, em 2005, assumiu o erro da defesa e chamou de “merecidas pauladas” as réplicas que recebeu de Merquior.

De Foucault à psicanálise, vários foram os alvos que propiciaram revolta nos meios de comunicação e ambientes acadêmicos. Mais tarde, quando Merquior assumiu convicções liberais e estreitou laços com políticos, consolidou-se a imagem de grosseiro polemista e representante da direita — resultados compreensíveis, dados os contextos históricos de polarização política, regime de exceção e acidentados passos iniciais na retomada democrática.

Espantoso é que, 23 anos após seu desaparecimento, a gordura ideológica daquele período ainda embace de forma tão determinante as lentes de quem se dispõe a pensar o legado de José Guilherme Merquior. Entre detratores, segue visto como intelectual reacionário; entre admiradores, não recebe senão as insuficientes defesas de outrora — que também carecem de rigor analítico — e outras não menos constrangedoras conclusões, como a de que só lhe faltavam virtudes espirituais!

Como resumiu José Mário Pereira, “Merquior foi um polemista, mas reduzi-lo a um profissional dessa arte é desconsiderar a riqueza de sua variada e extensa obra, toda ela vinda à luz em pouco mais de trinta anos de atividade crítica”. Amigos e antagonistas nas discussões políticas, como o recém-falecido Leandro Konder, também testemunhavam a generosidade do homem Merquior, que não revestia seus embates com ódio, que costumava tratar com cordialidade os adversários ao encontrá-los pessoalmente, além de lhes propiciar tribunas para que sustentassem suas ideias.

Mais do que isso, no entanto, é fundamental que se diga: desconsiderando momentos excepcionais, José Guilherme Merquior foi pensador contundente, porém moderado. A maior parte de sua produção comprova a vocação para ideias em equilíbrio, ainda que as agitações em torno sugerissem o contrário.

Inequívoca moderação
Esvaziadas de seu conteúdo filosófico, palavras como moderação e prudência se tornaram sinônimo de hesitação ou mesmo de covardia, rótulo pejorativo para quem se preserva “em cima do muro”. Pelo contrário, os significados clássicos remetiam àqueles que procuram os justos modos para bem agir. Os textos filosóficos sapienciais tratam do prudente como indivíduo de ação, que não titubeia, justamente porque busca conhecimento e reflexão que sustentem sua jornada.

Ora, como definir Merquior como moderado, se ele não se refugiava em cima do muro, tampouco se portava timidamente diante dos confrontos? Acontece que ele representou a moderação em sua quase perdida significação. Sob os gestos decididos e públicos, aquela argamassa erudita e reflexiva, matéria de uma vida dedicada ao estudo e à racionalização. Suas polêmicas não se guiavam por ofensas gratuitas, nem suas inquietações eram exercícios retóricos travestidos de dialética — por trás de sua afiada lâmina argumentativa, restava sempre o intelectual disposto a rever posições, cônscio de que evoluía ao se confrontar com bons debatedores.

Seus exegetas costumam citar a erudição (embora ele insistisse que era ilusão causada pela precariedade da vida intelectual brasileira), o rigor das análises e seu poder de síntese. Ao apresentá-lo aos novos leitores, João Cezar fez questão de ressaltar algo que considera pouco explorado: a potência de atualidade de sua obra — o que de fato pode ser comprovado em qualquer dos cinco livros já reeditados: em ordem de relançamento, Verso universo em Drummond (originalmente publicado em 1976), Razão do poema (1965), A estética de Lévi-Strauss (1975), De Anchieta a Euclides: Breve história da literatura brasileira (1977) e O liberalismo: Antigo e moderno (1991).

Levando em conta as mais de cinco mil páginas publicadas por Merquior em 21 livros, Eduardo Cesar Maia destacou a natureza interessada e independente de Merquior, que travou “franco diálogo com as diversas correntes teóricas de seu tempo, mas sem submeter sua perspectiva crítica a qualquer forma de dogmatismo ideológico — como era bastante comum num período de debates tão intensos”.

Merquior não só rejeitou dogmatismos, ele demonstrou nítida tendência ao equilíbrio, evidente preferência pela conciliação das forças em jogo nos debates teóricos e políticos. A começar pelo liberalismo social que professou após seu distanciamento das correntes marxistas, opção que está longe do reacionarismo de direita do qual tanto lhe acusaram. Ele próprio sintetizou a via moderada, contrária aos paternalismos de esquerda e ao culto do estado mínimo da direita:

Para os liberais sociais, “a preocupação com a liberdade positiva levou-os a ultrapassar o Estado minimalista. Mas não eram de qualquer forma hostis, como questão de princípio, seja ao individualismo, seja ao liberalismo; e sua preocupação cívica já estava presente em Tocqueville e Mill. Eles certamente se livraram da primeira estatofobia liberal, mas não eram estatistas”.

Outro comentador, Wanderson Lima, destaca uma das constantes na obra de Merquior: a natureza antirromântica de suas especulações estéticas, que rejeita o “apelo a categorias como genialidade e inspiração e jamais pensa o poema como forma discursiva que diz o indizível”. Contudo, ele reconhece que Merquior recusa também a outra face da moeda: “reduzir o poema a um conjunto de operações deliberadas e friamente pensadas”.

Rodrigo Petronio, por sua vez, lembra que Merquior percebeu o alcance das ideias formalistas e soube aproveitá-las sem se deixar aprisionar: “jovem avesso ao culto à forma e aos maneirismos teóricos de algumas linhas do estruturalismo e do pós-estruturalismo, (…) é também aquele que dedicará a maior extensão da sua obra crítica à análise da forma profunda da obra de arte”. Na mesma trilha, Leandro Konder registrou a dupla rejeição de Merquior — ao formalismo e ao conteudismo — além da firmeza em repelir tanto o monolitismo das unidades dogmáticas quanto o ecletismo que descambava para “justaposição estática de ideias não integradas a um todo coerente”.

Lâmina afiada e flexível
Ainda sobre a maneira de lidar com o ecletismo, Konder ponderou que a presença das contradições no pensamento de Merquior “só lhe traria a limitação do ecletismo se ele se “acomodasse” a elas, se ele parasse nelas. Mas o ensaísta procura, no dinamismo do seu pensamento, assumir tais contradições, superá-las em seu movimento”.

Eis palavras ausentes na rigidez dos discursos extremados, e típicas do exercício moderado: contradições, dinamismo, movimento.

Assim como Octavio Paz — outro liberal moderado que foi injustamente tratado como reacionário de direita — de quem se tornou amigo íntimo, José Guilherme Merquior soube lidar com suas contradições, pôs-se sempre em movimento e, na ausência de uma autobiografia de fato, transformou o próprio diálogo entre ensaísta e objetos investigados em uma espécie de diário de bordo de suas jornadas intelectuais.

Daqui até o término da reedição de sua obra pela É Realizações, talvez a poeira dos excessos ideológicos tenha baixado, talvez a gordura dos antigos traumas brasileiros também tenha diminuído. Aí sim, mais libertos dos clichês e sabedores como lidar com as demandas circundantes, os exegetas poderão revisar proveitosamente o legado de José Guilherme Merquior. E será desses momentos auspiciosos para vida intelectual do Brasil, quando uma candeia é finalmente acesa de forma que ilumine cômodos que seguem na escuridão, apesar das tantas janelas que a história não desiste de oferecer.

NOTA
Todas as opiniões citadas neste ensaio constam das apresentações e posfácios dos títulos já publicados na Coleção Merquior, da editora É Realizações.

Cristiano Ramos

É escritor, crítico literário, professor e jornalista. Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco. Em 2015, publicou os poemas de Muito antes da meia-noite.

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