É importante dizer desde o início que Stephen Greenblatt, em seu livro sobre Shakespeare, não parece estar interessado em acurácia historiográfica ou documental, e sim em dar conta de uma experiência de leitura. Tal experiência se materializa finalmente em livro, Como Shakespeare se tornou Shakespeare, e esse movimento de “tornar-se” alguém, ou de tornar-se aquilo que de fato se é, é algo que demanda tempo, trabalho e paciência. No caso de Greenblatt, o Shakespeare que ele vê é muito provavelmente diferente do Shakespeare que se costuma ver por aí — e é nesse intervalo ou nessa hesitação que o autor constrói sua argumentação.
Para Greenblatt, foi necessário um longo tempo de convivência com a documentação e a historiografia para, finalmente, saber lidar com esses elementos através de uma escritura que é, simultaneamente, veículo de um desejo de fruição estética da literatura e compromisso intelectual. Antes do livro em questão, que na edição original chama-se Will in the world e foi lançado em 2005, Greenblatt também publicou Renaissance self-fashioning: from More to Shakespeare, em 1980, e Shakespearean negotiations: The circulation of social energy in renaissance England, em 1989 — estudos sobre Shakespeare que de certa forma preparam o caminho até o resultado maduro e ousado que resenho aqui.
Dada a incerteza com relação às informações disponíveis sobre a vida de Shakespeare, Greenblatt define sua biografia como “um exercício de especulação”. Não há certeza sobre a data de nascimento do escritor (23 ou 26 de abril de 1564), embora se saiba que tenha nascido na cidade de Stratford-upon-Avon. Seus pais provavelmente eram analfabetos, ainda que isso não tenha impedido seu pai de se tornar prefeito da cidade. Presume-se que William tenha ido à escola, mas não há qualquer documentação que o comprove. Esse jogo entre dúvida, especulação e suposição acompanha toda reflexão sobre Shakespeare, argumenta Greenblatt, e a passagem inexorável do tempo não torna nada disso mais fácil, muito pelo contrário. Seu projeto é, de certa forma, uma espécie de aposta no vazio.
Vida e obra
É precisamente a discrepância entre esse vazio biográfico e a materialidade das peças teatrais que gera o culto em torno a Shakespeare, a bardolatria. Com o distanciamento histórico, sua figura foi ganhando contornos míticos, como uma espécie de Jesus Cristo da Renascença — com seu próprio conjunto de ditos e escritos e seu próprio séquito de seguidores. Assim como o nazareno, Shakespeare também teve seus “anos perdidos”, nos quais não se sabe se foi soldado, açougueiro ou professor. Como escreve Greenblatt:
O mistério a respeito de como vivia Shakespeare na época que os acadêmicos chamam de “anos perdidos” — o período em que ele sumiu de vista sem deixar nenhum traço documental numa sociedade abertamente documentalista — tem gerado uma enormidade de especulações. Lendas, algumas delas mais plausíveis, outras menos, começaram a surgir cerca de setenta e cinco anos após a sua morte, ou seja, numa época em que aqueles que poderiam tê-lo conhecido pessoalmente estavam mortos, mas quando ainda havia gente que na juventude poderia ter estado com seus contemporâneos e recebido informações sobre ele
Não apenas a biografia de Shakespeare se torna ponto de disputa, mas também e principalmente sua obra — desde as peças até os sonetos. E tanto obra quanto vida são mobilizados em conjunto com o objetivo de iluminar certos pontos obscuros da trajetória do escritor, especialmente no que diz respeito ao seu relacionamento com a família, o Estado e a religião. Com relação ao tópico da família, por exemplo, Greenblatt especula sobre a relação entre a morte do único filho homem de Shakespeare, Hamnet, e a escrita de sua peça mais famosa, Hamlet. No mesmo tópico, Greenblatt percorre as peças de Shakespeare mostrando a inexistência de casamentos felizes — talvez reflexo da relação conturbada do dramaturgo com sua esposa, Anne Hathaway. Como desdobramento dessa questão, há inclusive uma série de considerações acerca da possível homossexualidade de Shakespeare.
Mas no campo da especulação envolvendo os tópicos familiares, políticos e religiosos, acredito que a maior produtividade, na argumentação de Greenblatt, está no último deles, ou seja, no contato de Shakespeare com a religião de sua época. Mesmo um conhecimento superficial da obra shakespeariana já faz notar a impressionante quantidade de referências ao Mal e ao Demoníaco. Desde figuras disformes até bruxas e feiticeiras, passando por tiranos sanguinários e vis, até chegar no mais famoso dos personagens ligados ao além, o fantasma de Hamlet. Escreve Greenblatt sobre o assunto:
Shakespeare tinha de ter cuidado: as peças eram censuradas, e não teria sido permitido referir-se ao purgatório como um lugar que realmente existisse. Portanto, há uma astuta literalidade na observação do fantasma de que está proibido de “revelar os segredos de minha prisão”. Mas praticamente todo o público de Shakespeare entenderia o que era essa prisão, um lugar a que o próprio Hamlet se refere quando, poucos momentos depois, jura “por são Patrício”, o padroeiro do purgatório. O fantasma estava sofrendo o destino tão temido pelos católicos fervorosos.
A fé de Shakespeare
Hamlet, portanto, volta mais uma vez à cena dos comentários sobre Shakespeare, mas agora a partir de um viés múltiplo — algo que Greenblatt consegue realizar não apenas por conta da documentação de que dispõe, mas principalmente por conta de sua habilidade de costurar tantos elementos em uma narrativa de alta qualidade. Ou seja, o autor propõe uma releitura minuciosa da peça a partir dos elementos históricos — aquilo que há de família, política e religião na peça — e também a partir de seus elementos “intrínsecos”, digamos assim, de uma atenção igualmente minuciosa do que está escrito e das diversas camadas do escrito. A dissecação do purgatório e da menção a são Patrício, conforme vimos no trecho citado acima, é um bom exemplo dessa dinâmica de Como Shakespeare se tornou Shakespeare.
Para além das considerações religiosas, a aparição do fantasma também é fundamental para a própria ação da trama de Hamlet. Greenblatt argumenta que a peça dentro da peça (o momento em que Hamlet promove uma representação teatral para flagrar o Rei Cláudio) é um artifício desenvolvido pelo protagonista para obter alguma informação independente das alegações do fantasma. Real ou não, físico ou metafísico, o fantasma leva Hamlet a uma série de atos que encaminharão a peça ao seu clímax. Além disso, a própria presença do fantasma é o indício de um embate histórico muito acirrado entre a Igreja Católica e a Igreja Anglicana. Os protestantes, escreve Greenblatt, “diziam que a própria idéia de purgatório era mentira e que tudo o que se precisava era de uma fé vigorosa no poder salvador do sacrifício de Cristo”. Havia os que tinham essa fé, continua Greenblatt, “mas nada na obra de Shakespeare leva a crer que ele fosse um deles”.
Nesse sentido, Shakespeare fazia parte de um grande grupo que ainda lutava com temores e carências que os antigos recursos da Igreja Católica tinham servido para direcionar. Greenblatt afirma que Shakespeare devia freqüentar regularmente os serviços religiosos em sua paróquia protestante, pois, “de outra forma”, “seu nome teria ido parar nas listas de não conformistas”. Nesse ponto é a falta de documentação que serve para corroborar uma hipótese. “Mas será que ele acreditava no que ouvia e recitava?”, é a pergunta que faz Greenblatt. “Suas obras mostram que ele tinha algum tipo de fé, porém certamente não era uma fé ligada à Igreja Católica ou à Igreja Anglicana”, ele responde. A fé de Shakespeare estava depositada no teatro.
Resposta ao vazio
É nesse ponto de conclusão que posso comentar aquela que talvez seja a hipótese mais instigante do livro de Greenblatt. Uma hipótese que diz respeito justamente à fé e à religiosidade, que Shakespeare soube canalizar para o teatro, para a representação e para a literatura. Shakespeare entendeu, escreve Greenblatt, “que os principais rituais fúnebres em sua cultura tinham sido esvaziados”, e que portanto havia um “grande reservatório de sentimentos apaixonados” que deveriam desembocar em algum lugar. “Shakespeare explorou a piedade, a confusão e o pavor da morte num mundo de ritos danificados” — um mundo que ainda é o nosso, completa Greenblatt.
Diante da grande torrente de dúvidas desencadeada pela Reforma, Shakespeare respondeu com uma nova forma de vida — uma vida que primeiro se dava de forma postiça, nos palcos, mas que em algumas gerações ampliou em muito seus domínios, alcançando a linguagem cotidiana e as instituições. À movimentação revolucionária da Reforma, Shakespeare “reagiu não com orações”, escreve Greenblatt, “mas com a mais profunda expressão de seu ser: Hamlet”. Em seguida, o autor cita pesquisas do século 18 que procuraram mapear a atuação de Shakespeare como ator. Pouco sobrou, pois “as lembranças tinham murchado”. A única informação que sobreviveu com relação ao assunto é quase profética e bastante sintomática: como se anunciasse sua sobrevivência quase sobrenatural, tais estudos apontam que o ponto mais alto do desempenho de Shakespeare foi interpretando, é claro, o fantasma de Hamlet.