“Viver não é necessário, o que é necessário é criar”, assim Fernando Pessoa assinalou sua divisa poética. Ele, como outros poetas, entendeu que o gênio poético é planta cuja seiva (a solidão, o “não-viver”) traz em si todas as condições necessárias para seu florescimento.
Mas essa solidão hoje atemoriza. Solidão no criar, solidão no “não propagar” o que foi criado. Há poeta que abrace esse anonimato? Talvez nem nos tempos de Pessoa… O próprio gênio português não se absteve em participar de um certame onde sua obra recebeu o segundo lugar.
Caso bem diferente o da poeta norte-americana Emily Dickinson, que o leitor brasileiro pode agora revisitar (ou conhecer) na tradução de Augusto de Campos.
Não que nela não residissem expectativas de alguma natureza: uns poucos poemas seus chegaram a ser publicados em vida, e o crítico Thomas Higginson teve contato com outros, através de suas próprias mãos. Todavia, nada muito além disso.
Ao leitor pode parecer insegurança da poeta, mas os 80 poemas que compõem o volume desfazem a impressão:
“A fama para Mim, se há senso,
Todo Louvor será
Supérfluo — Incenso
Desnecessário —
A Fama para Mim — se eu penso —
Ainda que Suprema —
Seria Honor sem honra —
Um fútil Diadema —”
Neles há uma autoridade poética cuja qualidade surpreendente, para a época e nossos dias, desafia leitores, nas dimensões infinitas de símbolos e concepções dentro de sua expressão sintética e intensa.
Mais ainda surpreende que esse manancial poético emirja de uma vida socialmente tão árida.
Gênio do isolamento
Emily Dickinson nasceu em 1830 e viveu pouco mais de meio século em Amherst, Massachusetts. Da casa paterna pouco se deslocou, tendo conhecido brevemente cidades vizinhas como Washington, Filadélfia e Boston, onde foi buscar tratamento oftalmológico. A parte isso, viveu vida reclusa, o que gerou especulações: um relacionamento homoerótico com sua cunhada Sue; um amor frustrado por Samuel Bowles, e por Otis Phillips Lord, juiz 18 anos mais velho que a poeta. Certo é que seu ciclo de amizades era restrito.
Talvez nenhum outro escritor nos ponha, por isso, mais atônitos a refletir sobre o milagre da mente criadora. Entende-se, na obra, o que o crítico Harold Bloom denominou como “gênio do isolamento”:
“Pus meu Poder em minha Mão —
Contra o Mundo me vi —
Eu tinha menos que Davi —
Coragem dupla — e Coração —
Mirei a Pedra — mas a Mim
Coube cair — eis quem perdeu —
Era Golias — grande assim —
Ou ínfimo — eu?”
O “eu” é ínfimo em face do mundo, mas a questão que o poema coloca — as reais dimensões de ambos — tange o perspectivismo. A certeza é que o “eu” perece, mas a que isso se deve? A despeito da postura negativa da poeta, sua forma poética e expressão — o “Poder” — se impõem com segurança. Isso leva a crer que o óbice real provém de si mesma, o que não é de espantar nessa natureza cheia de paradoxos:
“Se recordar fosse esquecer,
Eu não me lembraria,
Se esquecer, recordar,
Eu logo esqueceria.
Se quem perde é feliz
E contente é quem chora,
Que alegres são os dedos
Que colhem isto, Agora!”
Eis um elemento muito presente em sua poesia, como os célebres travessões que dão a seus poemas um ritmo sincopado (moeda corrente na lírica modernista):
“Mecânicos os pés —
Parar — é perecer — a um passo à frente —”
A se ressaltar ainda o ritmo idiossincrático de Dickinson, sua recusa a sistemas métricos e de rima — ao menos quando estes ameaçam a lógica interna da criação poética.
O universo simbólico de sua linguagem é singular, às vezes de difícil penetração, presumivelmente por ser muito alusivo à vida íntima da poeta (casos em que os pronomes e os termos em maiúscula são o eixo do enigma):
“Louva-o — já morreu —
O brilho agora é breu —
Aquece o grave Ouvido
Com o encômio devido —
Aqui deixou seu rastro —
Reveste o Gosto de alabastro
Dos Prazeres do Pó —
Pela Recusa redimido —
Augusto e só.”
É uma linguagem condensada em pequenas estrofes, intensa, como a dor que, em sua manifestação, não se submete à circunscrição do instante:
“A Dor contrai — o Tempo —
Num mero Tiro
Milhões de Eternidades
Cabem num Suspiro —”
Não seria essa poesia, vasta em sabedoria mas breve na expressão, a mímese ideal da própria existência de Dickinson?
Tradução
Verter para o português (uma língua “prolixa”) tal poesia é problemático. A própria concepção de tradução poética já o é em si.
Augusto de Campos, como tradutor e poeta concretista, tem plena ciência da potencialidade semântica e expressiva do signo poético. Ele sabe ser virtualmente impossível transladar uma poesia, a tradução sendo um exercício hermenêutico sumamente individualizado, mas nem por isso menos comprometido em preservar os predicados do original.
É a essa preservação que se dedica sua transcriação. Obsessivamente atento às aliterações, ao ritmo e, sobretudo, à musicalidade dos versos (patente na extensão deles, rigorosamente similar), Campos não tem pejo de operar mudanças “materiais” em sua tradução, assim, no poema 12, a Esperança, que em Dickinson é “little bird” (o adjetivo acentuando seu aspecto tênue e frágil), em Campos é apenas “Ave”; semelhante caso ocorre no poema 69, onde temos “Who cares about a Blue Bird’s Tune”, que em Campos fica “Quem ouve a Ave e sua Canção”; as omissões das características dessas “aves” revelam o papel decisivo da leitura do tradutor no processo, o que inclui ainda a construção de rimas ausentes no original.
Tais contrastes não implicam, todavia, demérito da tradução, de resto muito criativa e meritória:
“Nesta vida tão breve
De que nos dão só um gole
Quanto — quão pouco — está
Sob o nosso controle”
Antes acentua a eminência poética desta que, imersa em seu exílio existencial, soube expressar os paradoxos, a transitoriedade, as complexidades da vida. Nessa edição bilíngue, a leitura conjugada é a riqueza maior do conjunto — dela, o leitor sairá amplamente compensado.