Atraídos pelo brilho da Belle Époque e repelidos de seus países originais pelo andamento de questões sociais que desembocariam nos grandes conflitos e revoluções do século 20, várias pessoas imigraram para a França nos anos 1900, incluindo muitos artistas. Isso permitiu vários encontros inesperados — como o que serve de inspiração para Querido Diego, sua Quiela, de Elena Poniatowska.
Estamos falando aqui de Diego Rivera (1886-1957), o conhecido pintor mexicano, e a artista plástica russa Angelina Beloff (1879-1969), conhecida como Quiela. Os dois se conheceram em Paris em 1909, se casaram em 1911, tiveram um filho em 1916 (Dieguito morreria aos 14 meses de idade). Uma história de um amor que sobreviveu à Primeira Guerra Mundial e teve contato com as grandes vanguardas artísticas do começo do século.
Depois das mudanças políticas decorrentes da Revolução Mexicana, Rivera resolve voltar para o México em 1921 (provavelmente fugindo do frio e da baixa qualidade de vida que tinha na capital francesa). Beloff fica para trás, vivendo o luto pela perda do filho, a ausência do marido e a precariedade da sua situação financeira.
Não é por acaso que essa história atraiu Poniatowska. A autora, filha de um francês de origem polonesa e uma mexicana na Paris de 1932, compartilha a geografia e deve ter se identificado com outras características, como a ascendência (parte do leste europeu, parte mexicana) e com a ida para outro país (ela também se mudaria para o México antes da Segunda Guerra Mundial). E para muito além disso, para uma autora tão interessada em desigualdades e questões de gênero, essa com certeza é uma história intrigante.
Uma das inspirações para o livro foi uma carta real escrita por Beloff para Rivera, que parece ter sido a última em uma sequência sobre sua realidade e ausência do marido. Até onde se sabe, Rivera não respondeu as cartas, limitando-se a escrever pequenas notas junto às remessas de dinheiro enviadas para Beloff. Rivera logo se casaria com a escritora Lupe Marín e abandonaria completamente o capítulo francês de sua vida. Poniatowska então reconstrói a correspondência dos noves meses anteriores, entre a partida de Rivera e a última carta em questão, nos apresentando um romance epistolar bem mais profundo do que pode parecer à primeira vista.
Desamparo e ultimato
É uma história de amor e, mais do que isso, um amor que deixa de ser correspondido. A dor, a saudade, a impotência: está tudo lá, na voz em primeira pessoa de Beloff chorando por seu amado. Mas essa também é uma história sobre comportamentos, sobre machismo e sobre uma sociedade bastante patriarcal.
Em primeiro lugar, são várias as mulheres que deixaram suas próprias carreiras artísticas de lado para dar suporte às carreiras de seus maridos. Clara Schumann é outro exemplo. Essa é uma situação que fica clara aqui — enquanto Rivera investe em sua carreira e contatos, Beloff precisava administrar a casa, cuidar dos afazeres domésticos, ter um filho e então cuidar de sua própria carreira. Com isso, a identidade da mulher se cria pela identidade do marido, sua carreira não recebe tanta dedicação, seus círculos sociais são os mesmos e a noção de vida própria dela é atacada.
Em segundo lugar, o livro é um retrato do que era aceitável como comportamento naquela sociedade. Rivera partiu sem, aparentemente, dar um fim real à relação, deixando sua esposa na expectativa de seu retorno. Ainda assim, o homem casa e cria novas famílias sem lhe dar satisfações, mandando-lhe apenas uma quantia de dinheiro que não parecia ser o suficiente (ela não conseguia nem aquecer a casa no inverno). Sem muitos amigos para quem pedir ajuda e com uma carreira própria muito incipiente, Beloff fica emocionalmente e materialmente desamparada.
Esse cenário se revela como pano de fundo, e motivo de interesse, da obra de Poniatowska: o comportamento de uma mulher que se vê nessa situação, com poucos recursos de reação (material e emocional). Seu desespero fica visível a cada linha — e traz com ele uma crítica de todo um sistema que apoia essa atitude. Poniatowska empresta a voz de Beloff para fazer uma crítica sutil a uma cadeia de comportamentos e ações que levam a situações como essa, chamando atenção para as injustiças e desigualdades na vida das personagens.
Isso fica ainda mais evidente com o formato escolhido pela autora — o romance epistolar com apenas um remetente. Lemos as cartas escritas pela personagem Beloff, mas nenhuma resposta. A ausência de resposta é, inclusive, uma temática presente no texto, o que evidencia ainda mais a ausência de Rivera e a falta de diálogo entre os dois. Mas isso também permite uma nova tomada de consciência de Beloff, que ao se pôr em palavras e se ver por escrito passa por um processo que culmina na última e derradeira carta para Rivera (aquela que deu origem ao projeto literário de Poniatowska).
No meio do abandono e do desespero, é possível perceber que a escrita de Poniatowska está permeada de sutilezas críticas. Com certeza, um livro para ler nas entrelinhas.