O brasileiro voador, de Márcio Souza, baseado na biografia de Alberto Santos Dumont, é um romance que, em linhas gerais, suscita uma série de questionamentos sobre a vida, a morte e a arte literária ou, mais especificamente, o desafio artístico contemporâneo de construção de narrativas que tenham como argumento a trajetória de celebridades. Qualquer que seja a linguagem escolhida pelo autor, literária, cinematográfica ou televisiva, multiplicam-se em várias dimensões os aspectos a serem abordados por ele, formando uma rede complexa de relações.
Márcio Souza, em breve nota introdutória, confessa sua antipatia pela figura de Dumont, “apropriada pelo culto militar, (…) símbolo de um patriotismo medíocre e ressentido”. Esclarece que não pretende realizar uma “biografia definitiva, oficial e inconteste” do pai da aviação. E realmente não é esse o seu projeto. Apesar de estar lidando com elementos biográficos, históricos e documentais, a proposta ficcional de Souza ganha força na voz de um narrador que, paulatinamente, abandona a antipatia inicial pelo seu protagonista para apresentar as conquistas e desventuras de um brasileiro como qualquer outro. O material biográfico passa por uma releitura através da escritura romanceada, muito embora se mantenha como elemento de curiosidade e sedução ao público leitor ávido por partilhar a intimidade de personalidades notórias. Micael Herschmann e Carlos Alberto Messeder Pereira, em artigo sobre O boom da biografia e do biográfico na cultura contemporânea, analisaram a seguinte questão: “O que se busca quando se consomem biografias ou, melhor, o biográfico?”. Acreditam que, “a partir delas, os agentes sociais, ao mesmo tempo atribuem sentidos e significados para a realidade e constroem, provisoriamente, um lugar para si no mundo”. Ou seja, são questões importantes que precisamos considerar.
O livro é apresentado despretensiosamente como “romance mais leve-que-o-ar e novela de entretenimento, contada com discreta inflação dos sentimentos e profusão de imagens e metáforas, onde os leitores conhecerão as desventuras de um brasileiro chamado Alberto Santos Dumont, e de como um dia ele voou por sua conta e risco”. Trata-se de um texto leve, diferentemente do 14 Bis e da vida do personagem. Pode ser lido como novela de entretenimento, sim, se levarmos em conta a construção ou “desconstrução” bem-humorada da trama trágica. Há uma discreta inflação de sentimentos no que diz respeito tanto ao narrador quanto aos personagens, que se permitem ler mais pela ação do que, propriamente, pela expressão de alguma interioridade.
A profusão de imagens e metáforas, entre outras coisas, é responsável pela leveza e poeticidade da trama. Os sugestivos títulos e subtítulos dos pequenos fragmentos remetem a uma intertextualidade muito ampla. Basta atentarmos para os títulos de cada capítulo. São inúmeras as referências a textos e figuras históricas, dos universos literário e científico ou da cultura popular. A profusão de metáforas e imagens que esses títulos sugerem, em alguns momentos, oferece sentidos; em outros, parece digressão ou nonsense, mas na sua maioria podem ser considerados como singelas homenagens aos heróis e anti-heróis da história da humanidade. Os infortúnios de Quincas Borba, Paulicéia desvairada, Canção do exílio, Minha formação, La gran vie, Darwinismo social, Os sertões, Pequenino mas resolve e A maçã de Newton são alguns dos subtítulos de fragmentos que se interpõem na narrativa, quebrando a linearidade temporal e semântica da ação, suavizando, de certa forma, os seus traços trágicos, ou simplesmente convidando à reflexão. O romance é tudo isso sim, mas não é só isso.
Argumento
O fato de ter nascido como argumento para um filme é muito importante para compreendermos sua estrutura narrativa. Os fragmentos que compõem os quatros capítulos do livro funcionam como fotogramas, captados por câmeras em movimento, centrados na ação do protagonista e dos personagens. Há uma voz narrativa predominante, em terceira pessoa, que cede espaço para outras vozes, desviando o foco narrativo para outros pontos de vista. A marcação destas mudanças de foco são tão sutis que parecem, por vezes, imperceptíveis. Funcionam como testemunhos de personagens que conheceram de perto Alberto ou Petitsantôs. “Alberto não era apenas o homem do inesperado, Sem (amigo e colaborador do protagonista) gostava de se lembrar. Meu amigo brasileiro era dono de um enorme sangue-frio.” O protagonista, em algumas situações, se desdobra em seu “duplo”: ora é Petitsantôs, o obcecado cientista inventor, ora Alberto, a pessoa física, o homem público. “Petitsantôs chega morto ao Brasil mas ninguém nota. Sapecam-lhe discursos e festejos. (…) Alberto, no entanto, sorri e aperta mãos, cofiando os bigodes grisalhos.”
Trata-se de um jogo de fragmentos que dialogam entre si negociando possíveis ou impossíveis sentidos, numa dinâmica infinita de combinações. A perspectiva épica clássica pretendia dar ao herói um conteúdo unificado de uma coletividade através de uma história coletiva. O romance moderno, em sua origem, pretendia ser o porta-voz de uma individualidade burguesa em ascensão. Daí, a necessidade de modelos exemplares que garantissem a hegemonia ideológica para fortalecer o poder político conquistado.
A complexidade do mundo contemporâneo cria novas exigências, amplia as ferramentas de leitura dos textos, dos contextos e, conseqüentemente, da vida. O século 20 anuncia radicais mudanças, além do avião, a televisão, o cinema, a conquista dos céus e do espaço interplanetário, a informática, a comunicação em rede global e suas tecnologias etc. Entretanto, por mais que a vertiginosidade da ação e da informação dê a tônica, é preciso reinventar o presente e, para tal, revisitar o passado é inevitável neste percurso. Mesmo que, para isso, olhar para trás signifique resgatar ruínas e reciclá-las como lentes de um novo tempo. Mesmo que seja preciso abrir mão de velhos mitos teleológicos. Nossos heróis se desnudam da filiação dos deuses, são ou órfãos ou herdeiros de uma condição humana, demasiada humana, como diria Nietzsche.
E é essa humanidade atormentada por suas paixões e desventuras que Márcio Souza resgata com O brasileiro voador, fragmentos de um tempo e de uma vida que ajudam a reinventar o presente e reafirmar a crença no homem e na sua capacidade de ultrapassar seus próprios limites. Como aprendiz dos pássaros, criar asas, perseguir os sonhos, enfim, voar bem alto, por sua conta e risco.