Há pouco mais de cinco anos tem havido a reedição da obra de alguns dos mais importantes poetas brasileiros. João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Ferreira Gullar e Jorge de Lima têm voltado às livrarias em reproduções que intentam primar pela alta qualidade: do apuro na feitura das capas à inclusão de rica iconografia, da supressão de gralhas à inserção de estudos críticos, tudo parece assinalar a iniciativa de um tratamento editorial que faça jus à representatividade das obras dadas novamente à luz (embora nem todas contem com todos os itens acima relacionados).
Pode ser que alguém me advirta por estar esquecendo algum nome. Se tal acontecer, será ótimo, porque a advertência chegará como um sinal da força da poesia brasileira. Mas o que listo como o que há de mais importante nas reedições tem a ver com a virtude didática que é o vício crítico de nossa historiografia literária comum, ou seja, a concepção de obras e autores a partir de fases ou estilos. Dentre os poetas mencionados, não há um único sequer em cuja obra se encontre apenas a exemplificação de tendências. Efetivando de modo maiúsculo a ideia de que é preciso buscar o novo e o diferente, tais poetas subverteram padrões antigos e não deixaram de extrapolar os atualizados, pois — como novos e diferentes que são — entenderam que o limite está no padrão que se pretende absoluto e ignora outras possibilidades, independentemente do adjetivo que lhe apareça ao lado.
Ao seleto grupo pode-se associar o nome de Cecília Meireles — porque sua obra vem sendo novamente publicada nos últimos dois anos pela Global, e por ser a sua poética marcada pelo signo da autonomia intelectual. Coordenada por André Seffrin, crítico gaúcho de importantíssimas empreitadas editoriais, a reedição de Cecília vai além de um “lançar mais uma vez”, tendo muito e principalmente de um lançar inaugural. Cito dois exemplos. O primeiro diz respeito a Espectros, livro de estreia da poetisa carioca, que durante muito tempo esteve desaparecido (por renegado pela autora), até que Antonio Carlos Secchin o desentranhou da outra luz, onde resplandecem as coisas ocultas. O livro só foi novamente visto pelo público quando Secchin o inseriu em Poesia completa, edição que em 2001 celebrou o centenário da autora de Ou isto ou aquilo. Agora, a quase totalidade dos leitores de Cecília terá pela primeira vez a oportunidade de conhecer o livro de maneira independente, exclusivo em sua unidade. Outro exemplo do que há de inaugural nessa empresa bibliográfica é o referente aos opúsculos Doze noturnos da Holanda e O aeronauta, publicados conjuntamente em 1952. Marcadas por teores diferentes, as obras são publicadas pela primeira vez em separado, o que é um acerto editorial.
Sei quem é, mas não conheço
É difícil medir o nível de circulação de um autor, mas suponho que Cecília Meireles ocupe uma curiosa página de nossa literatura, por ser um nome tão conhecido quanto ignorado. Muitos têm referências de sua obra destinada ao público infantil; aqui e ali se encontra alguém capaz de citar alguns de seus versos de cor; e, pela voz de Raimundo Fagner, suas palavras passearam por mais de uma vez pelas paradas do sucesso radiofônico. Entretanto, a visitação crítica à sua obra ainda parece aquém da importância que lhe é intrínseca. Talvez que a empreitada em destaque estimule a mudança do quadro, e é animador e alvissareiro o trabalho do grupo de estudiosos convidados aos prefácios dos livros reeditados.
Assim, destaque-se, inicialmente, o nome do poeta e crítico Henrique Marques-Samyn, encarregado do introito a Espectros (1919). Renegado pela própria autora, o livro figura como impregnado por um parnasianismo inconveniente às ideologias poéticas que se consolidaram no século 20. De opinião distinta, Henrique vê na obra da então iniciante uma procedência que a liga à produção posterior e que se tornou “oficial” em Cecília: “(…) não me parece necessário, nem pertinente, situar o volume numa ‘pré-história’ literária de Cecília Meireles. O que aqui proponho, com todos os riscos inerentes a esta decisão, é que ousemos reintegrar definitivamente à produção poética de Cecília Meireles esta obra, que enfim nos foi inteiramente restituída”. A verificação dos dezessete sonetos que compõem o volume permite facilmente concordar com o prefaciador, pois por meio deles já se notam alguns dos elementos caros ao universo literário de Cecília, como a atmosfera noturna, a evocação de símbolos tradicionalistas e o apuro formal, algo observável no poema de abertura, o qual empresta nome ao livro:
Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo,
Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda.
Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo,
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,
Da lâmpada à inconstante claridade
(Que ao vento ora esmorece ora se aviva,
Em largas sombras e esplendor de sóis),
Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva
— Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.
Considerando os livros reimpressos até o momento (e a cronologia bibliográfica da autora), Espectros é sucedido por Viagem (1939), com que “a dicção de Cecília ganha forma pessoal, inconfundível, e que seria constante ao longo de seu itinerário”, conforme assinala Alfredo Bosi. Em sua apresentação, intitulada A poesia da viajante, o afamado crítico paulista destaca a simbologia do título para a poética que a partir dali se tornava enfim aquela que viria a ser: “Na poesia de Cecília Meireles o ato de viajar é mais do que um tema literário. É uma dimensão vital, um modo de existir do corpo e da alma”. A tal modalidade de essência artística, somo o símbolo da canção, também parte da pele e da carne da poeta: “E aqui estou, cantando”, anuncia o primeiro verso de Discurso. Viagem e música se consorciam e se tornam o transporte uno para destinos diversos, os quais são sempre um pouso de ida. Viajora e cantante, a poesia anuncia o milagre da vida, a dispensar quês e porquês:
Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis
uma sonora ou silenciosa canção:
flor do espírito, desinteressada e efêmera.
Por ela, os homens te conhecerão:
por ela, os tempos versáteis saberão
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,
quando por ele andou teu coração.
Se os termos que traduzem o ser da poesia ceciliana são os que sinalizam para a constituição de uma voz poética que então se estabelecia em Viagem (o trânsito e a música), não se pode perder de vista outro fator responsável pelo adensamento da singularidade da obra de que tratamos. Falo da extraordinária capacidade de Cecília Meireles de exprimir beleza, uma beleza em nada previsível, ainda que em textos pautados por assuntos secularmente explorados, como a devoção amorosa. Se em Cânticos, de 1927, a abertura se faz com a alta voltagem da antítese envolvendo o efêmero e o eterno do ser apaixonado — “O vento do meu espírito/ soprou sobre a vida./ E tudo que era efêmero/ se desfez./ E ficaste só tu, que és eterno…” —, no livro de 1939 é frequente o canto amoroso que se afina pelas desarmonias da existência, seja em Serenata — “Permite que agora emudeça:/ que me conforme em ser sozinha./ Há uma doce luz no silêncio/ e a dor é de origem divina” —, seja em Onda: “Quem falou de primavera/ sem ter visto o teu sorriso,/ falou sem saber o que era.// (…) mas quem falou de deserto/ sem nunca ver os meus olhos…/ — falou, mas não estava certo”.
Se este Viagem é o livro em que se ouve a Cecília já como segura regente de sua sinfonia, não é de estranhar que ele traga, como confirmação, um dos textos mais conhecidos de toda a sua trajetória. Verdadeira súmula poética, Motivo explica razões sem renunciar à linguagem do mistério:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
No tempo, nos tempos
Publicado em 1942, Vaga música é um livro em forte consonância ao anterior. O prefácio da nova edição coube a João Cezar de Castro Rocha. Já no primeiro parágrafo de seu texto, o crítico faz um diagnóstico fundamental acerca da poética ceciliana. A longura da citação feita aqui se justifica pelo alcance do comentário de João Cezar:
Publicado em 1942, Vaga música ajuda a esclarecer o lugar especial ocupado por Cecília Meireles na literatura brasileira. De fato, ela começou a marcar seu nome em meio à eclosão do modernismo de 1922. No entanto, desde as primeiras publicações, Cecília se manteve deliberadamente alheia à necessidade de afirmar-se através da negação programática do passado. Pelo contrário, buscou renovar as fontes clássicas do lirismo luso-brasileiro, retomando, com raro domínio técnico, metros tradicionais, e revigorando, com sensibilidade contemporânea, formas como a canção, o terceto, o romance, entre outras. E não se esqueça do simbolismo, pois, como os estudiosos de sua obra sempre destacaram, a centralidade da música e do espiritualismo na sua visão de mundo muito deve à estética simbolista. Nesse sentido, os poemas coligidos em Vaga música levam adiante a fatura literária de Viagem (1939), recordando uma autêntica arqueologia poética da tradição.
Essas observações dão conta de traços basilares da obra ceciliana, dizem muito do que a autora produziu e do que sua produção significou em meio a um contexto. Além disso, tais observações encontram forte eco nos outros livros agora reeditados, bem como nas palavras de seus prefaciadores.
Conforme sublinhamos, Henrique Marques-Samyn afirma que a, por assim dizer, “ainda-não-Cecília” do primeiro livro, como é vista convencionalmente, já é, sim, a poetisa que décadas depois se consagrou. Para a convenção, ali não há Cecília Meireles por haver demasia parnasiana (é como em geral se entende a hegemonia da forma fixa no volume). O que dizer, então, de Solombra (1963), apontado por Antonio Carlos Secchin (no prefácio) como “aquele que viria a ser o testamento poético de Cecília Meireles”? Faço a pergunta porque para o estudioso — dos maiores conhecedores da poesia de Cecília —, Solombra reúne “alguns dos mais densos textos de sua obra, formando um livro austero e complexo”, o qual, ainda com Secchin, é composto por “vinte e oito poemas de rigorosa arquitetura”.
De modo algum pretendemos afirmar que a forma fixa signifique, por si só, poesia de interesse, tampouco que esse elemento baste para dizer que Cecília teve a mesma mão do princípio ao fim. Mas soa curioso que por conta da forma padronizada ela tenha sido desabonada em seu princípio, e que em seu ápice a forma padronizada esteja presente. Na introdução a Amor em Leonoreta (1951), Miguel Sanches Neto vê na relação do livro com a tradição lírica portuguesa uma conexão com outras temporalidades, o que denota um retroagir histórico que “atende a um projeto unificador, principal energia lírica de Cecília Meireles”. Esse retorno unificante transborda naquele que é provavelmente seu livro mais conhecido — Romanceiro da Inconfidência (1953) —, tematizado por um importantíssimo episódio da história nacional e redigido numa estrutura antiga, mais própria da tradição lusitana do que da brasileira. Conjugando isso ao que dissemos no início sobre os poetas reeditados, veremos em Cecília a independência literária que marcou sua postura, o que, agora por outro lado, não quer dizer desprezo pelas conquistas do Modernismo e das tendências que a ele se ligam. Antes, isso denota o sábio reconhecimento de que, em poesia, os recursos não se invalidam, e sua atualidade depende da maneira como o poeta se serve deles. Voltando ao preâmbulo de Viagem, nos deparamos com a afirmação (de Alfredo Bosi) de que “a viajante colhe o sim e o não de todas as coisas”, e o retorno ao prefácio de Vaga música permite ver uma opinião exata a esse respeito: “Não se pense, porém, na imagem equivocada de uma poesia de antiquário! Na verdade, os versos de Cecília Meireles transcendem o tempo imediato, projetando-se no horizonte da experiência literária, cuja atualidade é assegurada pela permanência de um fiel público leitor”.
De algumas das páginas desse belo volume de Cecília Meireles emanam sólidas confirmações dos juízos postos em relevo aqui. Em Canção quase inquieta, por exemplo, a voz que canta não se afirma aguda nem grave: “Sempre assim:/ de um lado, estandartes do vento…/ — do outro, sepulcros fechados./ E eu me partindo, dentro de mim,/ para estar no mesmo momento/ de ambos os lados”. A vocação dual, tão explícita e notada, não se afigura um ambiente confortável para quem a exprime. O gesto deliberado de não se filiar a uma diretriz específica é correlato de liberdade, tão desejada e inalcançável para muitos. Mas a liberdade tem preço, que pode se manifestar justamente como angústia quando se constata a ausência de um porto seguro. Daí prossegue o poema, em seu desfecho: “Fazedor da minha vida,/ não me deixes!/ Entende a minha canção!/ tem pena do meu murmúrio,/ reúne-me em tua mão!/ Que eu sou gota de murmúrio,/ dividida,/ desmanchada pelo chão…”. E já que a vida só é possível reinventada — como diz, no livro, o poema Reinvenção, outro de seus mais conhecidos textos —, a persona lírica vai desenhar sua imagem de maneira unitária, ainda que a unidade se conclua como um vácuo, matéria de Encomenda:
Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.
Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.
Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia…
Não… Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.
Como indicado antes, Amor em Leonoreta veio a público em 1951. Também prefaciador da edição do centenário da autora de Poemas escritos na Índia, Miguel Sanches Neto assina a apresentação da plaquete, que é, na bibliografia ceciliana, o “primeiro livro-poema propriamente dito, revelando aí o desejo de dar uma andadura mais narrativa à poesia, cuja culminância será o Romanceiro da Inconfidência, publicado logo depois”. Ao comentar o título, Miguel Sanches alarga o esclarecimento de uma Cecília não propriamente modernista, mas sim autora de um fazer poético moderno, por meio do qual o passado não é mero objeto de veneração, sendo antes um grande mosaico em que pululam possibilidades de inovação artística: “Amor em Leonoreta”, prossegue Miguel, “é o portal de entrada para o medieval luso, um túnel do tempo que une duas idades, eliminando as distâncias. Não há interregnos entre o século 13, de onde vem A canção de Leonoreta, e o século 20, de onde Cecília Meireles escreve. Trata-se de um único tempo, cerzido pelo fio forte da poesia. Como se sabe, o refrão de seu poema, a partir do qual vai construir o livro, vem de uma peça produzida por João Lobeira, trovador do século 13”.
Portanto, efetiva-se um dos exercícios mais prestigiados pela modernidade literária — o da intertextualidade —, aqui ainda mais denso por estruturar todo o livro, também moderno por fundir narrativa e lirismo: “Pela noite remorsa,/ só por alma te procuro,/ ai, Leonoreta!/ Leva a seta um rumo claro,/ desfechada no ar escuro…/ O licrone beija a rosa,/ canta a fênix do alto muro:/ mas é tal meu desamparo,/ Leonoreta, fin’roseta,/ que a chamar não me aventuro”.
Publicados em 1952, os Doze noturnos da Holanda confirmam a variedade e a essência conciliadora da poesia ceciliana, principalmente por terem sido publicados em conjunto com um livro de extensão semelhante (curta), porém de teor distinto: O aeronauta. Pela primeira vez os livros circulam em separado, mas aqui a separação não é divórcio: “Meu nome agora é diverso./ Indeclinável”, sentencia Dois, do segundo livro. Ao apresentar Doze noturnos, Aristóteles Angheben Predebon faz acurada análise do livro à luz de seu vínculo com a música, afinal, o termo “noturno” tem forte vínculo com a arte dos sons: “Assim, nos noturnos de Cecília, não cabe procurar uma poesia cheia de imagens e metáforas, mas antes a musicalidade intimamente reflexiva”. A mais, Aristóteles destaca o caráter noturnal da linguagem do livro, o que confirma a acepção elementar do termo que se inscreve no título, ao mesmo tempo em que permite constatar a imbricação entre tema e forma discursiva: “(…) enquanto nossa tradição de noturnos veicula uma meditação sobre a noite, seu silêncio e uma espécie de comunhão de soledade entre os seres, a poesia de Cecília faz-se noturna, não apenas pelo que diz, mas em como o diz”. De quebra, vemos nesse ponto alto da trajetória da autora mais um ligamento com seu embrião. Afinal, os espectros têm na noite seu habitat preferencial: “A noite levava-me tão alto/ que os desenhos do mundo se inutilizavam./ Regressavam as coisas à sua infância e ainda mais longe,/ devolvidas a uma pureza total, a uma excelsa clarividência”.
Conquanto derive da mesma experiência que originou o livro anterior (uma viagem de Cecília à Holanda), O aeronauta tem dicção diferente, a começar pelo discurso conciso (se comparado ao anterior): “Ó linguagem de palavras/ longas e desnecessárias!”. Na prévia, Ivo Barroso acentua a distinção entre os dois volumes: “De nossa parte, acreditamos que O aeronauta seja bem mais que um simples complemento poético dos Noturnos. Seria mesmo o seu antípoda, a outra face, exprimindo uma nova dimensão espacial da autora [consta que os onze poemas do livro tenham sido escritos ou meditados no voo de volta dos Países Baixos], egressa de um outro mundo, vivendo em novo estado de espírito”. No livro anterior, a noite não tem simbologia comum nem unilateral — “A noite não é simplesmente um negrume sem margens nem direções” —, entretanto, não deixa de exibir sua vocação de obscurecer orientações firmes: “Eu mesma não sei quem sou, na alta noite”. Assim, O aeronauta, que também não concebe simbologias por uma perspectiva única — “Não clameis por sua sorte!/ Tanto é noite quanto dia./ E vida e morte” —, tem ares amenos e cores de nuvens, das nuvens livres de cores: “Perdoai-me chegar tão leve,/ eu, passageiro/ dos céus, de límpido vento”. De habitual neste livro, só a eterna novidade ceciliana de ser singular: “E tudo que me respondem/ fica também noutras eras,/ vem de outra idade./ Pastor que contempla ocasos,/ eu mesmo sou o meu caminho,/ claro e sozinho”.
O Romanceiro da Inconfidência, publicado em 1953, é um grande sucesso editorial de Cecília (a que recebi para resenhar, de 2012, é a nona edição) e um dos maiores feitos de toda a poesia brasileira. Causa surpresa que esse êxito comercial seja alcançado por um livro que, no século 20, foi escrito em forma arcaica (o romance em verso). Poeta e historiador, Alberto da Costa e Silva sublinha, no prefácio, justamente o encontro complementar de poesia e história: “(…) Cecília Meireles recria poeticamente um pedaço de tempo e, ao lhe reescrever poeticamente a história, dá a uma conspiração revolucionária de poetas, num rincão montanhoso do Império português, a consistência do mito”. Assim, discurso poético e narrativa histórica vão aonde não iriam se estivessem amputados, e, juntos, atingem a magnificência:
Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.
Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos;
— calados, ao peso da sela,
picados de insetos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.
O canto derradeiro de Cecília Meireles congrega a luz e a treva: Solombra, de 1963, é, nas palavras de Antonio Carlos Secchin, o “testamento poético” da autora. Como já dissemos algo do livro e citamos partes de seu prefácio, que ouçamos a cantora, para que ela dê o tom do encerramento — tom de solilóquio e sinfonia:
Quero uma solidão, quero um silêncio,
uma noite de abismo e a alma inconsútil,
para esquecer que vivo — libertar-me
das paredes, de tudo que aprisiona;
atravessar demoras, vencer tempos
pulutantes de enredos e tropeços,
quebrar limites, extinguir murmúrios,
deixar cair as frívolas colunas
de alegorias vagamente erguidas.
Ser tua sombra, tua sombra, apenas,
e estar vendo e sonhando à tua sombra
a existência do amor ressuscitada.
Falar contigo pelo deserto.