Se você tem pelo menos 50 anos, como eu, já foi um sartreano de carteirinha. O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), influenciado primeiro pela fenomenologia de Husserl (1859-1938) e depois pelo existencialismo de Heidegger (1889-1976), teve uma vida tão profícua quanto sua obra, volumosa e variada. Nem sempre semelhante fortuna rende um reconhecimento à altura, mas Sartre, além de fecundo, foi um ativista, e chamou atenção entre as décadas de 40 até a morte, exatos 40 anos depois. Para comemorar seu octagésimo aniversário, em 1985, um qüinqüênio já falecido, a ensaísta e biógrafa Annie Cohen-Solal publicava um alentado volume em que examina em quatro partes uma vida que, a rigor, se dividia em duas. A do primeiro existencialismo, quando o filósofo toma o homem como produto de seu projeto individual e de suas ações e conseqüências. Em A náusea, romance de 1938, ele escreve: “penso que não quero pensar. Mas isso mesmo sou eu e meu pensamento. Então isso não mais acaba?” Noutro trecho, resume um capítulo inteiro com este conteúdo: “Nada. Existi”.
Essa fase encontra seu apogeu em O ser e o nada (1943), obra máxima da ótica sartreana, na qual o escritor vasculha a “nadificação” de uma espécie de indivíduo e a essência participativa de um outro cujos atos o enraízam a movimentos sociais. Era um aceno para a guinada do “segundo existencialismo”, cuja fundamentação teórica encontra-se em Crítica da razão dialética (1960). É o Sartre que funde existencialismo e marxismo, que visita Cuba, que começa a expor-se aos críticos de plantão, vindos de toda parte. Mas se ele entende que obrigatoriamente o homem ou é engajado ou aliena-se, e não o perdoam por sentenciar o pensamento do indivíduo a uma campanha que pode ser justificada mas nunca um destino, a quarta parte da biografia de Cohen-Solal mostra que ele acorda. Da visão solitária dos anos inaugurais e da guinada do olhar solidário da década imediatamente após a II Guerra, sobrevém uma espécie de terceiro Sartre, que se sente responsável por quase tudo, mas que não abre mão dessa entidade inalienável: o sujeito.
Quando em 1964 ganha o Prêmio Nobel de Literatura, recusa-o. Caso único na história do prêmio mais prestigiado do planeta, que se deixa a Academia Sueca em apuros, consagra-o pela independência e pela coerência ao que defende. Não faltarão os que vêem no gesto a repetição da soberba do jovem professor nos anos 1930.
Modelo biográfico
Se Sartre é um modelo a ser seguido (talvez até mesmo por uma certa extravagância, embora a palavra seja desastrada para designar alguém com tamanha produtividade), a biografia que por certo mereceu acabou de tal forma como modelo que depois dela a maioria dos que sobre ele escreveram afirmaram que após Cohen-Solal pouco havia a ser dito e nem sequer descoberto.
A edição que sai agora traz uma introdução preparada para o volume atualizado que circulou na França durante o centenário de seu nascimento, em 2005. Se para alguns, aferrados em demasia às questões que uma filosofia hoje, aberta ao dialógico, propõe e já não mais quer tanto assim saber de Sartre, há todos os demais aspectos a se considerar: o jornalista, criador de Les Temps Modernes, principalmente, além de outros periódicos. O ficcionista, que publicou a trilogia de romances Os caminhos da liberdade (A idade da razão, Sursis e Com a morte na alma) mais o volume de contos O muro. O dramaturgo, que teve inúmeras peças em cartaz e com bom público, uma delas, em especial, entrando como clássico do teatro universal, Entre quatro paredes, da qual se extrai, repetidas vezes, a já batida frase “o inferno são os outros”. Outras peças, sempre citadas, As moscas, Mortos sem sepultura, Os seqüestrados de Altona, O Diabo e o bom Deus e A prostituta respeitosa. O ensaísta e biógrafo capaz de psicanalisar autores complicados como Baudelaire (o título é este mesmo, publicado em Portugal) e, sobretudo, Flaubert, sobre o qual produziu sua derradeira e mais extensa obra, não traduzida para o português certamente pela extensão, cerca de 3.000 páginas: O idiota da família, que começou a escrever em 1971 e teve de interromper no quarto volume em razão da cegueira que o acometeu nos depressivos anos derradeiros.
Dividida em quatro enormes seções, a biografia cobre os anos 1905-1939 (A caminho do gênio), 1939-1945 (Uma metamorfose na Guerra, capítulo dos mais reveladores e onde se nota a mais profunda mudança interna no filósofo), 1945-1956 (Os anos Sartre, onde a consagração acontece e o existencialismo de fundo fenomenológico começava a sofrer infiltrações marxistas) e 1956-1980 (Um homem que acorda, época em que ele e a companheira de décadas, a mais escritora e ensaísta que propriamente filósofa Simone de Beauvoir se engajam até na distribuição de panfletos ligados a maio de 1968, Guerra do Vietnã e outras causas).
O que fica de um livro monumental desses, não só pela extensão mas também pela intensidade com que a autora estuda seu biografado, é uma espécie de busca (com ânsia habilmente controlada) pela reabilitação moral de um homem que não hesitou em desafiar não apenas o seu tempo, mas o tempo de muita gente. Daí o fato de ter sido amado e desprezado sem nunca, jamais, ter sido ignorado por quem quer que fosse. Quantos o achassem equivocado, ainda assim corriam a lê-lo, a escutar-lhe as entrevistas no rádio, na tevê. Parece não haver a menor dúvida de que foi um incômodo. A razão é que tocou em pilares sociais antigos e modernos, acostumados a nunca serem forçados a ponto de quase caírem por terra.
Um narcisista, segundo alguns críticos de primeira hora, quando ainda começava. Um tacanho, segundo outros de última hora. A realidade é que vivi minha adolescência, juventude e cheguei à idade adulta testemunhando que o que Sartre dizia repercutia sempre. No mundo inteiro. Não faltariam os que se queixassem. Não faltaram os que, como Cohen-Solal, vêem nele uma personalidade em permanente movimento. Que não pode ser classificada, como a maioria, sem muita dificuldade, pode.