A vida fascinante de Sir Richard Francis Burton, oficial do Exército Britânico, no auge do período colonizador da Inglaterra vitoriana, tem suscitado muita curiosidade. Não se encontra facilmente congregada em um único personagem histórico, tamanha quantidade de feitos e excentricidades, num repertório de experiências tão vasto e multifacetado. Com certeza, estamos diante de uma das personalidades mais interessantes do século 19. Permaneceu oito anos na Índia (1842-1849) — onde teve acesso ao Kama Sutra, obra que viria a publicar e traduzir; passou pela Arábia, local em que, disfarçado de muçulmano afegão, empreendeu a sagrada peregrinação de Meca a Medina e ainda participou de uma perigosa expedição pelo coração da África, em busca da então misteriosa nascente do rio Nilo (1857-1858).
Os compêndios de História registram-no como: explorador, orientalista, etnólogo, exímio lingüista e tradutor, cônsul britânico em Santos, Damasco e Trieste. Apontam ainda à sua excepcional cultura e habilidade para chegar a falar mais de 40 línguas e dialetos, deixando um legado de cerca de 60 livros, entre os quais traduções para o inglês do Livro das mil e uma noites e do Kama Sutra.
O romancista Ilija Trojanow é um entre os tantos intelectuais que se deixaram atrair por essa figura mais que instigante. Mas o grande feito de seu romance O colecionador de mundos é o de deixar evidente que se trata de uma ficcionalização da trajetória de vida de sir Burton. Embora inspirado em dados biográficos, informações, documentos abalizados que recuperam a época em que o famoso personagem viveu, o escritor búlgaro não se deixa atrelar aos fatos históricos, mas apóia-se neles para extrair-lhes o sumo originalíssimo que nutre as fecundas e boas narrativas.
O traço mais acentuado que perfaz o romance é a necessidade de compor o perfil do colonizador inglês, que ora vem descrito por um narrador distanciado em terceira pessoa; ora pelos criados que o acompanharam nas diferentes expedições em que se empenhara; ou ainda recuperado por autoridades locais preocupadas com as segundas intenções do tão habilidoso agente europeu.
A polifonia — esse recurso definido por Bahktin como multiplicidade de vozes narrativas, ao longo do romance — é, nesse caso, um verdadeiro achado. E assim é, pois não estamos diante da precisão documental, exigida nos relatos de cunho biográfico, mas, pelo contrário, no território instável e movediço de um retrato pintado a mil mãos. Melhor dizendo, sir Richard Francis Burton, recriado por Trojanow, é tão múltiplo quanto são múltiplos e diversificados os depoimentos dos que com ele conviveram ou que o encontraram, durante sua extensa trajetória.
Perfil de Burton
Chama a atenção, assim, logo às primeiras páginas do livro, que tratam da época em que o explorador permaneceu na Índia, como o criado hindu Naukaram — que passa a ser o homem de confiança do coronel Burton, uma espécie de versão indiana do Passpartout de Júlio Verne — descreve o seu senhor:
Era alto, quase tão alto como eu. E mais forte, como um búfalo preto capaz de labutar o dia inteiro no campo. Ele era assim mesmo, incansável. Tinha olhos bem escuros, o que chamava a atenção de imediato. Mais incomum ainda era como eles pareciam nus. Confesso que nunca vi olhos tão nus como os de Burton sahib. Ele era capaz de capturar uma pessoa com o olhar. Eu próprio vi pessoas como que enfeitiçadas, como se ele as encantasse com seu olhar.
(…) Burton sahib destinava-me uma quantia fixa para pagar todos os custos. Eu tinha toda a administração da casa sob meu controle. Era um belo bangalô, situado, infelizmente, no fim do acantonamento. Os caminhos eram longos. Burton sahib ambientou-se com rapidez. Os outros oficiais o chamavam de griffin, “novato”, mas o apelido não durou muito tempo. Assim era meu senhor. Aonde quer que fosse, logo ficava conhecendo o lugar melhor do que aqueles que tinham vivido a vida inteira ali. Adaptava-se depressa. O senhor nem acreditaria se lhe contasse como ele aprendia rápido…
À força física, à personalidade imponente, aliadas a essa exímia capacidade de adaptação soma-se, na tentativa de traçar o perfil do famoso herói, sua curiosidade pelo aprendizado das línguas, assim descrita por outro narrador anônimo:
Só havia uma maneira de não desperdiçar sua vida: aprender línguas estrangeiras. Línguas eram como armas. Por intermédio delas, ele se libertaria dos grilhões do tédio, daria impulso à carreira, aguardaria missões mais exigentes. No navio, aprendera do hindustâni o bastante para se orientar minimamente, não fazer papel ridículo diante dos nativos, o que — constatou com espanto — era mais do que conseguiam até mesmo os oficiais com muito mais tempo de Índia.
Sua curiosidade é tanta que, recém-chegado às novas terras, pede ao criado que imediatamente lhe contrate um professor, a fim de aprofundar o conhecimento da cultura local.
Certamente, esse espírito de sir Burton, descrito como insaciável nas lides do saber, é um tanto quanto idealizado no romance. Mesmo assim, o que fascina é que o retrato que aqui se lhe vai delineando destoa do consenso geral da caricatura — mais que conhecida — do típico colonizador europeu, que parte em viagens de exploração.
É fato — comprovado historicamente — o quanto os colonizadores que submetiam os nativos das terras que pretendiam dominar eram violentos, inescrupulosos e sanguinários. Há infinitos exemplos, na longa trajetória de dominação dos povos e exploração de novos continentes, da violência desmesurada dos que se impunham pela força física.
Mesmo que essa fosse a tônica dominante do poderoso Império Britânico, na chamada Honorável Companhia das Índias Orientais, ou nas sucessivas expedições ao mundo islâmico, ou na África, o multifacetado personagem Francis Richard Burton, na ficção de Trojanow, não assume o papel do colonizador arbitrário, mas o daquele que busca adaptar-se ao diverso, por saber que a verdadeira cultura não é a que se sobrepuja em relação às demais, mas é justamente a que aceita e incorpora o outro, num processo de troca e assimilação contínuas.
Multiculturalismo
Tal perspectiva representa, no fundo, um prato cheio às teorias atualíssimas dos defensores do multiculturalismo. De certo modo, ao traçar um perfil mais que versátil de um colonizador britânico, aberto à aculturação, aos hibridismos e a uma curiosidade que chega à reverência da cultura adversa, o que temos é a encarnação das propostas ideológicas de descentralização do poder das maiorias étnicas brancas ocidentais e a revitalização das culturas das minorias, antes chamadas periféricas.
Adere-se, assim, ao que propõem, por exemplo, o sociólogo Michel Wieviorka e o historiador Serge Gruzinski, ao demonstrarem que o hibridismo e a maleabilidade das culturas são fatores positivos de inovação. Nada muito distante das discussões propostas por Edward Said, Nestor Garcia Canclini e Stuart Hall, entre outros.
Luz do Islã
O intento de aderir ao novo é tão marcado no romance que, ao chegar à Arábia, sir Burton, que acabara de deixar a identidade do Burton sahib indiano, será transfigurado no respeitável xeque muçulmano Abdullah. O disfarce é tão perfeito que ninguém reconhece o britânico nas novas vestes que assume então, uma vez que os trajes apropriados, o óleo de nozes a escurecer ainda mais a pele, a barba cerrada, além do conhecimento do idioma e das constantes manifestações de profunda sabedoria da doutrina sagrada do Corão, jamais fariam supor que aquela nova persona seria, em verdade, o inglês Richard Francis Burton.
Analogamente ao que o criado hindu, de modo idealizado, observara em relação ao seu senhor, aqui também o xeque Mohammed — mestre de Burton na nova terra — assim o descreve:
Orgulho-me de ter sido seu mestre. Aywa, aywa, aywa, xeque Abdullah era um homem culto e nobre, e um médico excepcional; pessoalmente, não precisei de sua ajuda, graças a Deus, mas histórias sobre sua capacidade andavam na boca de todos; era um médico que curava de fato. Era também um bom muçulmano, perdia-se quase nas questões da fé; tinha pouco apreço pelas coisas práticas, tanto assim que várias vezes precisei adverti-lo; sem a minha vigilância, teria sido ainda mais enganado e roubado (…) Ele era um homem alto, com um rosto bonito, cheio de luz… Foi o discípulo mais sério que já tive. Consciencioso, os senhores não acreditariam. Às vezes, quando eu não podia evitar certas passagens difíceis do glorioso Corão, nós líamos juntos a estrofe, repetidas vezes, e ele insistia para que eu a explicasse…
A versatilidade com que o herói entra nessa nova pele é tão grande que, durante a estada no Islã, quando resolve, inclusive, empreender o hajj (viagem sagrada a Meca e a Medina), para vivenciar até às últimas conseqüências a assimilação da cultura árabe, Burton/Abdullah se submete à circuncisão.
A experiência que vivencia, durante essa etapa da trajetória, é tão intensa que pode ser traduzida como um enaltecimento da cultura islâmica:
O xeque Abdullah se sente acolhido por aquele lugar. Sente que ele lhe dá paz. Como se o arrancasse de todas as armadilhas e vilanias da vida. Ele se adaptou ao Islã, mais depressa do que esperava; pulou arrependimento, privação e foi logo encontrando a entrada para aquele céu. Nenhuma outra tradição criou uma língua tão bela para expressar o indizível. Desde os cantos do Corão até a poesia de Konia, Bagdá, Shiraz e Lhore, com a qual gostaria de ser enterrado. No Islã, Deus está isento de todas as qualidades, e isso lhe parece correto. O homem está livre, não sujeito a um pecado original, entregue à razão. Naturalmente, também essa tradição, como qualquer outra, não tem a capacidade de melhorar o ser humano, de endireitar o que está quebrado. Mas, nela, vive-se com mais orgulho do que nos baixios repletos de culpa e desprovidos de alegria do cristianismo… Se tivesse liberdade para decidir e pudesse se servir à vontade, escolheria o Islã.
Muitas peles
Tanto na pele do britânico sir que se curva à sabedoria hindu, quanto na do muçulmano que perfaz o caminho sagrado à Meca, como, ao final do romance, na do buana Burton em plena viagem de exploração ao coração da África, as múltiplas camuflagens com que se veste o protagonista anunciam uma das máximas do romance: “Se, no próximo, enxergarmos sempre e apenas o outro, nunca vamos parar de machucá-lo. Sob esse ponto de vista, o diabo estava nas diferenças que os homens erigiam entre si”.
Ainda que de modo utópico e muito idealizado, surpreende o que subjaz às peripécias e façanhas desse incrível Richard Burton. Em tempos em que as questões do multiculturalismo roubam a cena, nada mais interessante do que essa investida no retrato de um sujeito capaz de “outrar-se”, trocando de pele com a maior versatilidade, quase a ponto de anular o eu original para compreender o diverso.
Isso tudo pode soar demasiado inverossímil, ainda mais partindo de um típico colonizador, explorador vindo da potência britânica. Essa contradição aparente, talvez, possa se resolver se pensarmos que o coronel Burton, segundo relatos da época, era fascinante, ousado, excêntrico e capaz de escapar à rigidez de seus colegas oficiais.
Como colecionador de mundos, é bom saber que seu discurso — mesmo que ficcionalizado — é o de aparar as arestas que separam os homens, elogiando como sábia a capacidade de adaptação, assimilação, sincretismo e respeito ao que nos é estranho. Se nos abrirmos ao mosaico de mundos que nos esperam, não criaremos muros nacionalistas de segregação, mas pontes de troca e intercâmbio do humano que ainda reside em nós, apesar e em nome de nossas mais gritantes diferenças…