Máscaras antes do fim

Composto de quatro partes completamente contrastantes entre si, "Ver: amor", de David Grossman, surpreende o leitor o tempo todo
David Grossman: ficção pode servir para exorcizar sentimentos.
01/07/2007

Palavras podem salvar? Podem matar, redimir, resgatar, exorcizar? Qual é o limite da ficção, até onde uma história — um punhado de palavras que formam frases, que formam parágrafos até completarem um único texto — pode ultrapassar o papel e causar um efeito qualquer no que se costuma chamar de vida real? E se a resposta for sim, qual será a natureza do efeito? Não são poucos os que acreditam que a literatura (como a arte, em geral) provoca muito mais sofrimentos do que alegrias. Tópicos como esse são tão antigos quanto a própria literatura. Como as possibilidades de resposta são tão abertas quanto subjetivas, é provável que tenhamos aí um questionamento perene.

O israelense David Grossman deu a sua contribuição para a discussão logo no seu segundo livro, Ver: amor, lançado originalmente em 1986 e recém-reeditado pela Companhia das Letras (já havia saído aqui pela Nova Fronteira). Um romance singular, composto de quatro partes completamente contrastantes entre si, às vezes excessivo e irregular, e que nunca deixa de surpreender. Surpreende porque os caminhos escolhidos pelo autor nunca parecem horizontais: é como se estivéssemos, ao invés de uma longa estrada reta, em um tobogã em que o que parece fácil logo se embaralha, e o que dá sinais de sinuosidade, encanta por uma solução que dispensa o prolixo — uma arte fugidia. É o que um personagem define, a certa altura, como fazer “guerrilha com as palavras”: mover “personagens tolas como um general movimenta uns batalhões”.

Grossman parece apostar que sim, a ficção pode servir como uma forma de exorcizar sentimentos, sejam eles bons ou ruins, da vida fora do papel. Para ele, a criação — e aqui não importa se se trata de uma história colocada em um papel, proferida oralmente ou apenas imaginada na cabeça — é um refúgio. Um abrigo delgado que provoca culpa e punição ao mesmo tempo em que causa placidez.

Na primeira parte de Ver: amor, temos contato com Momik, um garoto de nove anos que vive com a família, todos sobreviventes de campos de concentração nazistas, em uma pequena cidade de Israel. A vida da família sofre um abalo quando um sanatório entrega a eles o tio-avô de Momik, Anshel Vasserman, que todos acreditavam morto desde a Segunda Guerra. Vasserman, ex-escritor, está traumatizado, insano e claudicante, incapaz de entender o que quer que seja. O menino, cansado de ouvir os adultos falarem do inferno do Holocausto sempre de soslaio, como que escondendo tudo dele, aproveita-se dos monólogos ininterruptos e pouco inteligíveis do avô, para juntar pequenas partes do quebra-cabeça e entender o que diabo foi, afinal, aquele terror a que todos se lembram com tanto pesar.

Passa a criar suas próprias versões para os velhos contos do velho, assim como a estabelecer aquilo que chama de “besta nazista”. Fabulações assim são o único meio de Momik escapar dessa infância com aspecto de prisão. Encantado com narrativas desde que a falecida avó lhe contava histórias, ele descobre que pode criar novos sentidos para qualquer coisa. Decide e anota em seu diário que será escritor como o avô.

No segundo segmento, já um adulto, Momik recria a existência de Bruno Schulz, polonês autor do cultuado The street of crocodiles e morto em 1942 por um soldado alemão. Em sua versão, Schulz lançou-se ao mar para escapar da SS e foi tragado pelas águas. Passa a viver entre os salmões, com a compassiva e apaixonada permissão do Oceano. Esta segunda parte, atordoante, é a peça de resistência de Ver: amor. Chega a remeter à famosa abertura de O som e a fúria, de William Faulkner, narrada por um retardado. Aqui, temos as vozes narrativas de Momik, do Oceano e de Bruno alternando-se sem avisos ou marcações. Há também devaneios formais, em que Grossman navega entre a narração mais sóbria, capítulos epistolares e o puro fluxo de consciência (a ponto de entregar, em um momento de extremo, uma frase que dura quatro páginas).

Grossman embaralha os pontos de vista mesmo para confundir o leitor sobre a autoria do texto. O que a define? Em uma carta, Momik relembra a descoberta de Schulz, quando dedicava horas a copiar para o caderno a escrita de seu ídolo: “depois que acabei de copiar, a minha pena rabiscava de repente mais um pouco, contorcia-se sobre o papel e soltava mais uma ou duas linhas que eram minhas, mas — como dizer — na voz dele”. Essa pena que rabisca mais um pouco é o misterioso poder da ficção de redimir — se acreditarmos na visão de Grossman. A solução escolhida para Bruno sobreviver — sua odisséia pelos mares, repleta de aventuras e embates com peixes e tubarões — é propositalmente inverossímil, porque uma solução irreal como a própria suma da ficção.

Redenção pessoal
É inevitável que consideremos Ver: amor inteiro como um grande manuscrito de Momik, o já batido truque pós-moderno de transformar o personagem em autor do que lemos. Mais interessante é questionar o porquê disso. Nas filigranas dos capítulos, escondidos entre a saga de Bruno Schulz, os jorros narrativos, os costumes judaicos e os horrores da guerra, estão detalhes da vida pessoal de Momik, apresentados sempre de forma fugaz. Eles são, pode-se dizer, a chave do romance. Descobrimos que ele se enredou em um casamento medíocre, com uma mulher que ele admira muito mais do que ama, e com quem teve um filho. Foi um pai tão ruim quanto foi péssimo marido. Teve uma amante, típica, mais bela e impenetrável do que a esposa e que o abandonou. Também não consegue levar seus projetos literários para frente. Seus espasmos criativos rareiam mais e mais. É com a escrita que ele foge a tantos fracassos. E por mais que ele tente fazer o leitor acreditar que é impossível invocar o Messias “por meio das letras da língua que sofria de elefantíase” ou redimir com o toque da pena a “vida de prosa cinzenta e pequena” de Schulz, Momik deixa escapar, através de uma carta de sua esposa, que o amor só vence nas histórias. O restante do livro só corrobora a teoria de que se trata de uma obra de redenção pessoal.

Na terceira parte, voltamos no tempo. O cenário é um campo de concentração nazista, onde o avô de Momik, Anshel Vasserman, aguarda e deseja sua morte. Que nunca virá, por sinal, visto que os tiros dos soldados parecem não causar efeito algum sobre ele. Ele é descoberto por Neigel, comandante do campo e fã das antigas histórias infantis de Vasserman. Estabelecem um acordo: o judeu vai retomar as aventuras de seus personagens e, em troca, todas as noites o alemão vai dar um tiro no prisioneiro. Cria-se Kazik, personagem destinado a viver apenas 24 horas. No seu crescimento acelerado, viverá todos os tópicos cotidianos da vida humana, aqui divididos em verbetes enciclopédicos na quarta e última parte de Ver: amor.

Sob uma perspectiva completamente diferente, reaparecem os efeitos milagrosos da ficção. Haviam salvado Bruno Schulz da morte precoce com seu passeio pelo mar, e agora ressuscitavam Vasserman do mundo dos semimortos ao devolver-lhe o poder de criar. Ao ficar sem escrever, diz ele, “a pessoa se transforma, Deus me livre, num morto-vivo, na lápide da sua própria tumba”. O ato de contar histórias, entretanto, se salva Vasserman de décadas de ausência de idéias, provoca no oficial alemão uma crise de valores irreparável, que o faz pensar sobre a natureza absurda de seu trabalho e no modo como vinha levando sua vida conjugal. Trata-se do outro lado da literatura, o que corrói certezas, estimula dúvidas e redefine conceitos — a autodestruição metafísica a que todo leitor, masoquista, se impõe. E quando todas as convicções de Neigel findam, resta-lhe apenas a história de Kazik contada pelo “vermezinho judeu”.

Engana-se redondamente quem vê otimismo na visão que David Grossman tem da ficção — salvadora, redentora, reparadora. É o contrário. A ficção, para ele, é o único meio de mascarar nossa falibilidade. De aliviar corações decepcionados. Mas também de despedaçar aqueles que são incapazes de confrontar certos fatos, como Neigel, derrubado quando a névoa que encobria sua existência foi desfeita. Nove de cada dez resenhas de Ver: amor fazem referência à conhecida frase de Adorno, de que depois de Auschwitz a poesia é impossível. Não só é possível como é urgente. Ela, como a literatura em si e como toda a idéia de congelar por algumas horas o mundo para se dedicar a uma leitura, é o segredo que permite que “uma pessoa neste mundo viva toda a sua vida do começo ao fim e nada saiba sobre a guerra”.

Ver: amor
David Grossman
Trad.: Nancy Rosenchan
Companhia das Letras
530 págs.
David Grossman
Nascido em Jerusalém em 1954, David Grossman é considerado um dos principais escritores israelenses da atualidade. Escreveu contos, romances, ensaios e livros de reportagens. Além de Ver: amor, a Companhia das Letras publicou Alguém para correr comigo e Mel de leão.
Jonas Lopes
Rascunho