Convencionou-se que a paixão é algo da ordem dos produtos venenosos, em grande parte devido ao juízo esquisito dos psicólogos, psicanalistas e quejandos, à experiência desprovida da vivência. É comum escutar que fulano está cego de paixão, ele está apaixonado e por isso está metendo os pés pelas mãos ou então o clássico: é paixão, daqui a pouco passa.
Cada vez que escuto alguém falando de paixão me parece que a pessoa está falando da bossa nova, algo estranho que com o passar das décadas não evoluiu. No meu entender a paixão não é algo que anteceda o amor, mas parte fundamental deste. Sendo assim, o ideal é desprezar certos ditames. O negócio, paciente leitor, é amar com paixão.
O tema tem merecido minha atenção desde que reli A idade da paixão, de Rubem Mauro Machado, Prêmio Jabuti de melhor romance em 1986.
Certos livros à medida que são relidos, e poucos fazem jus a isso, vão mostrando nuances que devido a sua complexidade vão ficando em planos inferiores. Com A idade da paixão isso não ocorre, o que esconde certas nuances não é a complexidade e sim a sua magistral simplicidade.
Mas se o livro não é complexo e tem na simplicidade a sua característica mais forte, por que então merecer um Jabuti? O paciente leitor já deve ter cansado de ouvir a frase “minha vida daria um romance”. Até daria se escrita por alguém habilitado, pois para uma vida virar um romance não precisa necessariamente de acontecimentos de outro mundo, mas acima de tudo ser “uma história bem contada” e de preferência acessível ao leitor, manter uma conexão com a realidade. Reside aí um dos aspectos que diferenciam o livro do Rubem Mauro da grande massa insossa da literatura atual, literatura mais atenta ao que se passa alhures do que na sua aldeia.
A história é simples e ao alcance da mão ou da percepção do leitor atento: o ano é 1961, um jovem deixa a casa dos pais em Santa Maria e vai viver numa pensão repleta de precariedades em Porto Alegre a fim de concluir o segundo grau, condição sine qua non para enfrentar o famigerado vestibular.
E assim abandonando o ninho protetor tem início a vida do protagonista, mas a descoberta do amor, o despertar da individualidade não acontece sem dor, ou melhor, sem muita dor. Trata-se de um rito de passagem em que as indagações, as dúvidas abrem feridas doloridas expondo as entranhas das contradições capazes de transformar o ser humano, culminando com a morte, não a do protagonista, mas das suas ilusões juvenis. No que diz respeito ao amor, o protagonista, sem um grande poder de ação, alimenta amores platônicos por Silvia que lhe devolve uma fartura de sentimentos contraditórios. A adolescência, no entanto, admite este e outros comportamentos que mais tarde a “caretice” disfarçada de maturidade se encarregará de condenar. O narrador também cai na armadilha de acreditar que paixão é prerrogativa dos imberbes, o trecho a seguir é esclarecedor, cortante em sua crueldade lírica.
[…] repito Sílvia, Sílvia, Sílvia, com um fervor amoroso que talvez só na adolescência seja possível. Pode um homem humilhado (alguém que sequer se sente bem alimentado) aproximar-se de uma mulher? Sobretudo de uma mulher que o atinge? Alguém que pela falta de contato com mulheres sente agravada a natural timidez (e que, certa desculpa ao mundo feita), à saída do colégio, tendo uma moça inesperadamente se dirigido a ele, pedindo uma informação, sentiu-se enrubescer até as orelhas. Só faltava a alguém assim pedir por estar vivo.
Paralelamente a história do protagonista, suas agruras na luta pela legitimação de sua carreira de escritor, de seu ingresso na universidade e da conquista do seu primeiro amor, podemos acompanhar os espasmos da convulsão política que a renúncia de Jânio Quadros provocaria e de maneira ainda mais sutil e brilhante a história narrada pela menina interna em um convento. Se o protagonista dispunha da liberdade para acalmar seus anseios, à menina resta resignar-se com a perversidade e hipocrisia da Irmã Soledad.
Manhã cedo, Solidão entrou batendo a sineta por entre as fileiras de camas, parou junto à minha, parecia ter faro de cachorro, puxou as cobertas. Me levantou pelas duas orelhas, gritando que eu era uma porca, me deu safanões. Eu chorava, gritando para ela não me bater. Na segunda noite o sofrimento foi maior, porque eu sabia que o castigo vinha, mas a resistência também foi menor, porque eu já sabia que não agüentaria segurar. De manhã a sineta doeu no ouvido, Solidão foi direto para a minha cama e quase me arrancou as orelhas; doeram o resto do dia.
Então, paciente leitor, quando me foi dada a tarefa de escrever sobre A idade da paixão, senti um misto de prazer e dor. Prazer pela excelência do texto e dor porque as atrocidades narradas não são exclusividades da ficção.
O trecho reproduzido acima é de revoltar e mais uma vez A idade da paixão me fez voltar no tempo e lembrar do trajeto que eu costumava fazer de Santa Maria até Porto Alegre quando conheci a única religiosa que me sensibilizou, Irmã Francisca, onde estiver que olhe por mim.
O exemplo tem o intuito de mostrar a já falada conexão com a realidade. O romance não precisa seguir o protocolo de apresentação ao leitor, com 10 minutos de leitura a cumplicidade está estabelecida. A idade da paixão não traz nenhuma espécie de novidade, tampouco apresenta condições para surpreender. É simples. É o leitor frente ao espelho. Trata-se do óbvio bem temperado. Tudo tão convencional que mais uma vez me faz lembrar dos companheiros da pensão Vitória na subida da Rua da Praia, ali perto da praça Dom Feliciano em Porto Alegre nos meus anos 70. É tão convencional e esquemático que insiste na obtusa necessidade que fazemos questão de conservar que é a de obedecermos a certas regras, criarmos leis internas a nos permitir isso ou aquilo. Falo daquela fascinação que temos por entrar numa fila. Como se a idade da paixão fosse tão somente a da adolescência. Mas isso é um problema do livro então? Não, infelizmente isso é um problema que nós inventamos para nós mesmos. Quer dizer que na fila da paixão que vale a pena só é permitido entrar uma vez? Então vou assinar minha condenação: venho furando tal fila há décadas e vale a pena.
Impossível não se emocionar com a história de Rubem Mauro Machado. O livro fala com o leitor, pode ser visto também como uma homenagem à cidade de Porto Alegre e a certas utopias que guiavam alguns políticos gaúchos, infelizmente tão em falta. A idade da paixão, além de ser um deleite para aqueles que amam a verdadeira literatura, tem a capacidade de alimentar o sonho do leitor e despertar saudades sem as costumeiras lamentações. Algo como um alerta a dizer que a idade da paixão pode ser agora.
Não, leitor, não acredito em tempo ou idade da paixão, senão terei de acreditar também em idade de morrer. Prefiro vontade de viver. Com meu meio século de invernos no lombo, faço questão dos meus cabelos longos e desgrenhados, bem como meu all star vermelho e jeans surrados, me reinvento a cada amanhecer. E sem manual de instruções.