O leitor de língua portuguesa está bem servido de boas traduções do poema Orlando furioso, de Ludovico Ariosto. Até pouco tempo, todas eram do século 19, ora em prosa ora incompletas, e somente em 2007 apareceu, em Portugal, a primeira versão integral em oitavas rimas decassilábicas, realizada por Margarida Periquito. No prefácio da edição lisboeta, a autora enfatiza a precedência da publicação como “primeira tradução integral jamais feita deste poema em língua portuguesa, contemplando os padrões rimáticos e métricos da oitava de Ariosto”.
Nos idos de 2002, a Ateliê publicou um volume com os primeiros oito cantos e uma seleção de episódios em oitavas rimas, traduzidos por Pedro Garcez Ghirardi, que também assina o estudo introdutório. Essa edição, embora incompleta, mereceu o prêmio Jabuti de tradução. Em 2011, a Ateliê, em parceria com a Unicamp, publicou um volume com os cantos I a XXXIII e, agora em 2023, o restante do poema até o canto XLVI. Tanto a publicação portuguesa quanto a brasileira distinguem-se pela excelente qualidade editorial. Ambas reproduzem gravuras de Gustavo Doré ao longo do texto e, no caso da brasileira, destacam-se ainda dois aspectos relevantes: a edição de capa dura e o texto bilíngue. Ora, a possibilidade de ter a obra original à vista permite ao leitor realizar o confronto entre os textos e, com boa vontade e o apoio da tradução, fruir a leitura dos versos originais.
Quanto à tradução brasileira, destaco o virtuosismo com que Pedro Garcez Ghirardi verteu o hendecassílabo italiano para o decassílabo heroico português, isto é, o verso de dez sílabas poéticas com tônica na sexta e na décima posição. No conjunto hercúleo de versos, convido o leitor a observar alguns aspectos da versão para ilustrar a perícia do tradutor. Para tanto, vejamos três versos da estrofe 34 do canto VII. Ruggiero se encontra na ilha da feiticeira Alcina e Bradamante, ignorando o paradeiro de seu amado, está em sua busca. Na composição dos versos, Ariosto se vale de procedimentos discursivos, tais como a acumulação (circunstâncias, lugares) e o polissíndeto (repetição de termos de ligação), para dramatizar a incansável procura de Bradamante por Ruggiero:
Che molti giorni andò cercando in vano
pei boschi ombrosi e pur lo campo aprico
per ville, per città, per monti e piano.
Que por dias correu, em vã procura
Sob o sol ou das matas ao abrigo
Serra e cidades, póvoas e planura.
A tradução salvaguardou o ritmo dos versos de Ariosto (destacados acima) e a fluidez discursiva do texto original. Mais ainda, as palavras que contêm as sílabas grifadas (correu, matas e póvoas) centralizam os pensamentos veiculados no verso, como ocorre no poema italiano (andò, pur lo campo, città). Além disso, no lugar do polissíndeto (pei, pur, per, per, per), o tradutor empregou preposições equivalentes e os segmentos paralelístico (sob, das/ao; serras e cidades, póvoas e planura), o que resultou no mesmo efeito de movimentação e de enumeração de lugares verificado no poema de origem.
Noutra passagem, na estrofe 18 do canto XXXIV, na qual se apresenta a famigerada viagem de Astolfo à lua em busca do juízo perdido de Orlando, a recriação da estrofe em português exigiu certa alteração na ordem das ideias apresentadas. Isso em nada prejudicou o pensamento veiculado na oitava e os seus efeitos poéticos e musicais, que, mantidos pelo decassílabo heroico e pelas rimas consoantes, garantiram a fluência e a beleza do texto de partida:
Lungo sarà, se tutto in verso ordisco
le cose che gli fur quivi dimostre;
che dopo mille e mille io non finisco,
e vi son tutte le occurrenze nostre;
sol la pacia non v’è poca né assai;
che sta qua giú, né se ne parte mai.
Outras coisas que viu mui numerosas,
Pedem tempo que o verso meu não dura,
Pois lá encontrou guardadas e copiosas,
Mil coisas de que andámos à procura.
Só de loucura não viu muito ou pouco,
Que ela não sai de nosso mundo louco.
As soluções aplicadas por Ghirardi demonstram um talento incomum na arte de traduzir e o domínio da artesania do verso e dos seus efeitos plásticos e musicais.
Quanto aos aspectos gerais do poema de Ariosto, chamo a atenção para um texto composto por Manuel Pires de Almeida (1597–1655), letrado português do século 17, que ganhou fama (pelo menos entre os estudiosos de letras seiscentistas) por se envolver numa discussão pública com Manuel de Faria e Sousa sobre Os lusíadas de Camões. Isso parece hoje algo ocioso, mas no tempo era uma questão importante definir se a obra-prima camoniana era ou não uma epopeia segundo os preceitos da poética aristotélica. Nesse embate, Pires de Almeida defende que Os lusíadas não possuem a unidade de ação da epopeia greco-latina e aponta o efeito determinante do Orlando furioso nas concepções poéticas camonianas. Para tanto, Pires de Almeida, nas anotações intituladas Do romanço, ou Livro de batalhas e dos livros de cavalaria, propõe:
Os italianos ornaram e engrandeceram os Romanços melhor que nenhuma outra nação, e deixando quantidade de dúvidas, que em semelhante poema se têm levantado, e assentado convir-lhe o nome de poema, posto que não guarde a doutrina de Aristóteles, nem seja imitação de gregos, nem de latinos, é louvável, (…) e é certo que o Ariosto foi príncipe e digno de imitação nesse modo de poetar, e colhendo dele o mais excelente, e sujeitando à Arte, o que lhe mais convém, daremos seus preceitos.
Desse modo, para atestar a legitimidade do romanço como fonte camoniana, o letrado português pontua as características do gênero: não se obriga a unidade da fábula, e assim tem por conveniência a multiplicidade de ação. Quanto ao estilo ou à elocução, não atende com rigor ao costume das pessoas, nem ao resplendor da sentença, e muitas vezes é vil e não honesto na elocução. No que diz respeito à imitação, o romanço não imita com tanta perfeição, porque muitas vezes imita ações indignas de homens vis. A intenção visa sempre à massa de cavaleiros errantes e damas, de que descreve as guerras, os amores e, não obstante se prefira um herói a outros, basta a cada um que sobrepuje a mediocridade. Ainda sobre o estilo, começam os cantos com proêmios, sentenças e moralidades com o fim de cativar a atenção do leitor, face à diversidade e extensão do poema. Quanto ao título, toma-o de um cavaleiro destacado entre os muitos de que trata o livro. Com isso, Pires de Almeida conclui:
Estes, e semelhantes documentos observará quem compuser Romanços, levando sempre por guia ao Ariosto.
Voltando ao Orlando furioso, no Canto I, o exórdio apresenta o assunto da obra e contém a dedicatória dirigida ao mecenas do poeta, o cardeal Hipólito d’Este (1479–1520), filho de Hércules I d’Este, duque de Modena e Ferrara, e Leonora de Aragão. Quanto à matéria tratada, ou melhor, matérias, encontram-se no primeiro verso, à maneira da Eneida virgiliana: “Le donne, i cavallier, l’arme, gli amori,/ le cortesie, l’audaci imprese io canto” (“Damas e paladins, armas e amores,/ As cortesias e as façanhas canto”). Ariosto, leitor de livros cavaleirescos, tais como o Morgante Maggiore (1483), de Luigi Pulci, e o Orlando innamorato (1495), de Matteo Maria Boiardo, retomou-os e deu-lhes sequência.
Com isso, na proposição da obra, tendo em vista a adesão do leitor, declara: “Dirò d’Orlando (…) cosa non detta in prosa mai, né in rima” (“Direi de Orlando coisa jamais dita em prosa ou em verso”). O poeta se refere à loucura de Orlando, antes estimado por sábio, agora enfurecido pelo desprezo de Angélica. Para tanto, continuou a história que Boiardo deixou inacabada. Quanto ao Morgante Maggiore, de Luigi Pulci, não acatou o tom satírico empregado por ele. De fato, as continuidades são comuns nas narrativas de cavaleiros e formam ciclos e famílias de textos diversos.
Contudo, no caso do Orlando, além dos diferentes encaminhamentos que deu às personagens e às ações, o que mais chama a atenção é a diferença de estilo da linguagem. Os modelos de escrita de Ariosto provêm da tradição toscana, tais como a prosa de Boccaccio e, sobretudo, a poesia de Petrarca. Assim, pode-se dizer que na edição final do Orlando, a de 1532, o poeta adere à linguagem petrarquista, celebrada por Pietro Bembo no tratado Prose della lingua vulgar, conhecido desde 1502 e impresso em 1525.
No poema de Ariosto há pelo menos três fios narrativos que se entrelaçam na multitude de episódios e personagens: o combate entre Carlos Magno e Agramante, rei dos mouros. O amor enfurecido de Orlando por Angélica. E os feitos virtuosos do casal Ruggiero e Bradamante. Quanto a este último núcleo, trata-se de um dos principais aspectos sugeridos na obra de Boiardo e que Ariosto vai desenvolver com fins laudatórios e políticos. Por isso, as figuras de Ruggiero e Bradamante são destacadas como insignes ascendentes da Casa d’Este e, na narração, o destino dos cavaleiros se entrelaça com a história política do Ducado de Ferrara, constituindo uma genealogia encomiástica que remonta aos heróis troianos, ascendentes de Ruggiero. Além da dedicatória do canto I, é no canto III que ocorre a amplificação do elogio. O narrador, tomado de um “furor que arde no peito”, introduz o canto solenemente:
Che me dará la voce e le parole
convenienti a sí nobil suggetto?
chi l’ale al verso presterá, che vole
tanto ch´arrivi all´alto mio concetto?
Que palavras, que voz podem dizer
Tão subida matéria sem defeito?
Meu verso, antes de tanto pretender,
Onde asas buscará para tal preito?
Após a digressão apostrófica, o leitor é trazido de volta para o meio das ações e encontra Bradamante, traída por Pinabel, que foge convicto da morte de sua inimiga. A heroína, depois de cair num abismo, sobrevive e encontra uma gruta: é o magnífico mausoléu de Merlin. Ela é recepcionada pela feiticeira Melissa, que lhe profetiza os feitos dos descendentes de seu enlace com o amado Ruggiero: paira sob olhos de Bradamante (e do leitor) o cortejo dos heróis que compõem a genealogia dos soberanos da Casa d’Este.
Quanto à forma final do poema, sabe-se que Ariosto, desde os primeiros anos do século XVI até a sua morte, em 1533, esteve às voltas com a composição do livro. Pela diversidade dos textos, fica evidente que o poema foi melhorado por décadas, com três diferentes edições: em 1516 e 1521 saem as duas primeiras publicações, distintas entre si. Contudo, a edição de 1532 constitui-se como a versão final da obra com 46 cantos. Nela, além da inserção de novos cantos, houve também, como mencionado, as relevantes mudanças no estilo, segundo o modelo petrarquista e as proposições elocutivas de Bembo. Na ligação entre as partes da narração, os cantos são arrematados com passagens que ora anunciam o que há de vir, ora suspendem as ações e passam a outro núcleo de ações ou a outra personagem. Desse modo, a trama narrativa desenvolve-se por meio da celebrada “ottava d’oro” de Ariosto, com digressões morais frequentes e cenas de ironia e humor que unem o deleite poético à utilidade moral.
Para concluir, proponho a leitura da oitava 61 do canto VI, em que aparece a feiticeira Alcina, figura frequente nas artes plásticas e o título de uma das mais conhecidas óperas de Haendel, cujo libreto é uma adaptação do canto VII. Na passagem, Ruggiero ouve de Astolfo, transformado em mirto, os perigos dos encantamentos de Alcina. Ao buscar a saída da ilha encantada, o cavaleiro é perseguido por uma multidão de seres monstruosos:
[61]
Non ſu veduta mai piú strana torma,
più monſtruosi volti: e peggio fatti:
alcun dal collo in giú d’uomini han ſorma,
col viso, altri di simie altri di gatti,
stapano alcun con piè caprigni l’orma,
alcuni son centauri agili e atti,
son gioveni impudenti e vecchi stolti,
chi nudi e chi di strane pelli inuolti.
[61]
Chusma apareceu tão rara,
De rostos monstruosos, contrafeitos,
Uns de gatos ou monos têm a cara,
E em tudo mas são homens, desde o peito;
Uns com caprinos pés a relva apara;
Outro é centauro, lépido e perfeito;
Há velhos fátuos, rapazelhos reles,
Que andam nus ou envergam feias peles.
Trad. de Pedro Garcez Ghirardi.
[61]
Nunca foi vista tão estranha cambada,
tão monstruosas caras e aparatos:
alguns têm figura humanizada,
e rosto de macacos ou de gatos;
de pé caprino alguns deixam pegada;
centauros há também, ágeis e aptos;
jovens insolentes, velhos estultos,
nus ou com peles a cobrir os vultos.
Trad. de Margarida Periquito.
O hibridismo dos monstros figura o caráter da ilha de Alcina, lugar da desmesura e dos vícios enganosos. Além da interpretação moral possível, destaca-se o efeito retórico-poético produzido pela enárgeia, isto é, a descrição que põe diante dos olhos, o que resulta em ensinamento útil acerca dos vícios e das virtudes, e em deleite do espírito pelos efeitos poéticos do discurso. Mais ainda, o cavaleiro montado num hipogrifo, a sensualidade de Alcina, os monstros híbridos e outras tantas imagens nos remetem à figuração de Marcelo Grassmann, que foi poeta de nosso tempo e certamente leitor da obra de Ariosto.