Estamos na era das antologias. A safra ressurgiu desde a virada do século, com a Antologia do conto brasileiro, organizado por Ítalo Moriconi, e Cem poetas brasileiros, por José Nêumanne Pinto e Rinaldo de Fernandes. Além delas, vimos surgir também a Geração 90: Manuscritos de computador, organizada por Nelson de Oliveira. Desde então, a idéia tem se proliferado e, entusiasmados, escritores, jornalistas, acadêmicos e poetas (em parte devido à enorme dificuldade de se editar de forma individual no Brasil) têm organizado diversas antologias. Só em Brasília, por exemplo, recentemente foram lançadas, dentre outras, Antologia do conto brasiliense, por Ronaldo Cagiano, e Poemas para brasília, por Joanyr de Oliveira.
É temerário avaliar uma antologia devido à irregularidade dos trabalhos. Tarefa espinhosa e ingrata para o resenhista (impossível conhecer a fundo o trabalho de tanta gente), que precisa se debruçar não sobre um universo literário, mas sobre a representação de vários, em geral, visões e intenções distintas, que não se complementam e não interagem. No caso das mulheres, recentemente foi lançado Contos de escritoras brasileiras (Martins Fontes), organizado por Márcia Lígia Guidim e Lúcia Helena Vianna, integrada por autoras já reconhecidas como Lygia Fagundes Telles, Adalgisa Nery, Clarice Lispector, Marina Colasanti, Sonia Coutinho, Rachel de Queiroz e Olga Savary, dentre outras.
Caminho inverso (não marcada pela consagração de suas autoras), segue a antologia 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, organizada pelo jornalista e escritor Luiz Ruffato (Eles eram muitos cavalos). O critério foi “dar voz” a escritoras que surgiram nos anos 1990, independentemente de suas idades, estilos, temas ou abordagens. Na Introdução, Ruffato traça um panorama histórico bastante amplo (Mulheres: Contribuição para a história literária) da participação feminina na literatura brasileira e relembra episódios como o da escritora Júlia Lopes de Almeida, selecionada para a Academia Brasileira de Letras, mas que acabou “cedendo” sua vaga para o marido, o também escritor Filinto de Almeida.
A antologia, além de ocupar um espaço junto a um filão no mercado editorial, sem dúvida também cumpre um papel político no momento em que publica contos dessas 25 mulheres. Normalmente, a questão da literatura feminina é abordada de forma ingênua e imatura, como antítese à masculina: “Não se deve falar em literatura feminina porque não existe uma literatura masculina”, algo comumente pisado e repisado, como, aliás, se falou numa mesa de escritoras da Flip, em Paraty. Raciocínio equivocado porque literatura feminina não deve buscar oposição nem enfrentamento com o universo masculino, mas, reconhecidas as diferenças de discursos, buscar seu espaço, sua visibilidade, como fazem agora, por exemplo, os gays. Isso porque é óbvio constatar a ausência ou redução (ainda hoje) de espaços equânimes dados à mulher e a seu discurso, assim como diversas outras representações humanas. Todas elas — padres, bichas, negros, índios e adolescentes, diria, mais ou menos, Caetano Veloso —, com sensibilidades e discursos próprios, enfim, com um “modo específico” de dizer algo. Assim, a questão não é comparar a literatura feminina à masculina, mas vê-la como representação de um sexo e de um olhar que sempre estiveram afeitos a preconceitos, silêncios, restrições e castrações. A questão, portanto, é política, claro. Como sempre foi político, por exemplo, o lugar do homem no mundo. No caso de uma antologia, a despeito de sua irregularidade, o importante é dar espaço a um discurso dentro de uma forma de expressão (a literatura) que sempre lhe foi hostil. A literatura feminina deve, portanto, ser assim chamada porque surge e vem de uma resistência à predominância de outros discursos e por “falar” de temas que muitas vezes foram silenciados, senso comum que infelizmente ainda parece ser necessário se repetir, base, aliás, das idéias de Simone de Beauvoir (O segundo sexo).
Mas de certa forma só poderia ser irregular, ou seja, é natural que essa antologia seja irregular, devido ao fato de abrigar escritoras tão distintas, com sensibilidades e temas igualmente distintos. O que há de comum entre, por exemplo, as novatas Tatiana Salem Levy (21 anos), Simone Campos (23 anos) e Ivana Arruda Leite, autora de dois livros de contos e colunista da Folha de S. Paulo? Nada, além do fato de serem mulheres e, felizmente nestes casos, boas escritoras. Sendo assim, isso não chega a ser um problema. Muito pelo contrário. Esse é o maior mérito dessa antologia: o fato de reunir escritas de mulheres que, de tão distintas, servem como um painel bastante amplo da produção literária feminina brasileira que surgiu na última década. No entanto, todas elas mereciam figurar nessa antologia? Quais as realmente boas ficcionistas? Isso, óbvio, é outra história.
Num panorama geral, diríamos que a antologia está bem representada. Há gratas surpresas, como Simone Campos (Bondade), sobretudo quando se sabe a sua idade. A “história” de Fernanda Benevides de Carvalho (Pão físico) trata-se de uma carta do velho Eleno para Carminha, em que a memória invade o testemunho do velho. O fantástico ganha destaque com Augusta Faro (Gertrudes e seu homem). Outro bom exemplo é Cíntia Moscovich (Um oco e um vazio). Percebe-se, desde a primeira linha, que a autora sabe manejar com habilidade a linguagem. Em seu caso, a conjugação rara, muitas vezes tentada e não alcançada, entre sensibilidade e crueza. Em termos de radicalidade narrativa e de quebra de gêneros um bom exemplo é o conto de Luci Collin (No céu com diamantes), que funde narrador, personagem e autor, fazendo autocrítica do seu próprio texto. O conto irônico de Ivana Arruda Leite (Mãe, o cacete) inverte a noção burguesa da mãe sacralizada e sempre necessária, em detrimento da figura paterna. Por fim, destacaria Állex Leilla (Um elefante), nenhuma surpresa para quem já conhece seus bons livros de contos e seu romance. Sua história é a aparente fixação de um cara por uma jovem, em meio a reflexões, marcas de solidão e amargura. Por falar em marcas, há muitas: De remédios, dentrifícios, calças… Sinais de trânsito, poluição, mídias, crises de relacionamentos, fast-food… Há muitas marcas e alguns palavrões atirados pelas personagens, em geral, inconformadas com seus homens e com o mal-estar comum das grandes cidades. Eis algumas (vagas) pistas dessa literatura contemporânea, percebida notadamente nos textos de Állex Leilla, Mara Coradello (Silver tape), Clarah Averbuck (Psycho) e Ana Paula Maia (Nós, es excêntricos idiotas). Nelas, vamos encontrar histórias fragmentadas e linguagem experimental, em meio ao universo pop e à dura rotina, ao cotidiano massacrante e chato. Dicção bem distante do decantado mundo feminino de flores e paixões… Ãh? É, alguém ainda associa as mulheres a isso, basta ver as nossas telenovelas. Ah, bom. Mas o leque de 25 Mulheres…, claro, é bem heterogêneo. Há ainda uma literatura mais intelectualizada, que trata do discorrer do tempo e da memória, como nos casos de Fernanda Benevides, Cláudia Lage (Uma alegria), Adriana Lunardi (Considerações sobre o tempo) e Augusta Faro, além da estreante Tatiana Salem Levy (Desalento).
Alguns poucos senões: O que dizer deste Caligrafias, de Adriana Lisboa? Minicontos? Fragmentos? Como a idéia do livro são contos ficamos sem saber o que se trata estes vários parágrafos que não se resolvem, centrados em descrições que não saem disso — pequenas histórias que não deram certo? E este Por acaso, de Nilza Resende? De longe, o conto que mais beira o lugar-comum, absolutamente previsível. Minha flor, de Lívia Garcia-Roza, chama atenção pela sua ineficácia, sobretudo quando se sabe que a autora já lançou cinco romances. Por fim, eis este Flor roxa, de Cláudia Tajes. Trata-se de uma historinha ingênua (paixão repentina entre uma leitora e um escritor após frenética troca de e-mails), com algum humor, mas que não o salva.
Percebe-se claramente que Ruffato quis dosar as devidas representações, inserir “vozes” distintas da literatura produzida por mulheres no Brasil contemporâneo, realizar certo enquadramento dentro desse “grande bolo” que é a nossa literatura atual. Se há alguma irregularidade na qualidade dos contos, por outro lado, isso é o que menos importa. Num momento em que as editoras se fecham para “os novos”, priorizando os mesmos autores já afinados com o mercado dos livros, a iniciativa de uma antologia desse porte é extremamente válida para conhecermos essas autoras, tirarmos nossas próprias conclusões e eventualmente nos interessarmos em ler alguns de seus livros. Juntas numa mesma antologia, elas conseguem expor um painel dos mais instigantes da nova safra de mulheres que escrevem neste país.