Escrever pouco, falar pouco, evitar espalhar-se em excessos para que a tensão não se perca, como uma corda estendida ao máximo. Às vezes, alongar demais o discurso em divagações e digressões faz o impacto desmaiar; desdobra-se em uma lonjura tola o que poderia ser curto e infinito — a lei da rapidez de Italo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, encontra aqui, nesta obra de Whisner Fraga, um exemplo curioso.
Há que se ter respeito com as leis internas do microconto. Isso porque o gênero parece fácil, no entanto, exige um comando de escrita maior do que a narrativa extensa, que pode se recuperar das quedas no meio do percurso; nos textos muito curtos, não. Se não houver impacto ou qualquer outro recurso que o valha, perdem-se o interesse, a leitura e o espanto. Escrever uma história curta, bem conduzida, alertou Calvino, é lançar-se como uma flecha e desaparecer no horizonte, calculando a rota (das palavras) para sair do labirinto no mais breve espaço de tempo.
Lúcifer e outros subprodutos do medo reúne contos curtos, uns ótimos outros nem tanto, alguns mínimos, de uma linha. No geral, conseguem a proeza do espanto — o que é um grande acerto. Existe impacto tanto no que as histórias (a maioria) em si apresentam como na estrutura mesma das frases. Trata-se de um autor cuidadoso com as palavras, em nome de uma “aridez exasperante”, com urgência em recusar os clichês.
São vários os medos vorazes, devoradores de vidas e de coragem, como o cachorro Lúcifer do conto que dá título à obra, um dobermann que precisará ser sacrificado porque não teria com quem ficar. Destruir o que amedronta (morde, caça, ameaça) um destino — funciona? A resposta, claro, não é oferecida, pois não há conclusões.
Nas cenas abertas como pequenas feridas, os medos aparecem aqui e ali; são aberrações que se auto-reproduzem: mata-se uma cabeça e outras dez surgem na sequência — nunca se vence todos os medos. Sempre haverá um para se multiplicar em outros e assim por diante. A forma como os temores se apresentam é um tanto bizarra, ainda que estes estejam cravados na vida cotidiana. São epifanias do sinistro que estalam em cenários do dia ou da noite, onde o medo assombra em seus diversos formatos: medo do erro, da rejeição, da violência, da fome, do abandono, da morte…
Os textos, que ganham sabor na releitura, são pedaços de estrada, caminhos pela metade que terminam em lugar nenhum. Ou pontes quebradas que de repente dão de cara para o abismo. No conto Rodoviária, por exemplo. O abandono real é simples, acontece e pronto, sem explicações, como na vida: “Ai, meu marido. Sumiu. Tão bom o coitado. O que, moleque? Não, não foi ao banheiro não. É, se tivesse ido, nos avisaria. Avisaria sim. E o ônibus chega em cinco minutos. Ai, meu marido, onde você está? Vamos para a plataforma, a gente espera lá. Ai, meu marido. Não chora, meu bem, mamãe vai cuidar de você”. Precisa dizer mais?
Existe impacto tanto no que as histórias (a maioria) em si apresentam como na estrutura mesma das frases. Trata-se de um autor cuidadoso com as palavras, em nome de uma “aridez exasperante”, com urgência em recusar os clichês.
Cena literária
Os medos não excluem a cena literária. E o pavor do não reconhecimento quando um escritor se sente um fracassado? No ótimo A farsa, com final surpreendente, fala-se de um autor que só vendia seu hermetismo para amigos condescendentes com sua persistência. “Uma hora cansa. Não que fosse fácil levar o nível para o térreo, pois a vaidade se queixa”.
Condescendência não existe em relação à tentativa de abafar o cruel. E o cruel pode ser a falta de compaixão com uma velha e sua pestilência, ou com um desejo incurável — aquele que a gente esconde, mas que vai ser sempre uma promessa latejante, como no conto A promessa: “(…) minha querida, fonte inesgotada para meu canibalismo, então poderemos estar juntos, um dentro e outro, fora, numa dança para a remissão dos instintos que escondemos até hoje, quando tudo se modificou”. Na questão sexual, ainda o medo da comparação. Em Swing, o conto é uma linha: “Então, amor, gozou? Ele é melhor de cama do que eu?”
O medo aparece também na dor de ver um filho com fome, no desespero de vencer o dia sem um emprego, ou no pavor de uma invasão inesperada, como em Emboscada: “Um vento que desabotoa cinicamente as travas e empurra a porta, abrindo-a. Um vento que encoraja essa afeição entre o medo e a noite. E a noite é esse rude disfarce para o insondável”.
Em Pureza, o confronto é com o desejo de morte. Não há como contê-lo. Em cena, um menino e um pássaro. Não basta matar em um duelo de fortes contra fortes sem covardia; é preciso esmagar o indefeso, o mínimo, para que a repugnância, assim como o torpor, instalem-se no coração da leitura — aqui ninguém deseja o correto, o alongado, o ardil para disfarçar o mal. O cru, no caso, é uma “respiração amarela” — o pássaro — sendo lentamente esmagado pelas rodas de um carro.
O recorte é na veia, para sangrar rápido. Não fosse isso e a flecha — aquela à qual se referia Calvino para descrever a necessidade da rapidez em um conto — não cruzaria o destino, cairia no chão antes de chegar ao final.
O último conto, de apenas três linhas, não por acaso se chama Constatação. Neste, há um resumo da estética e do pensamento que atravessam todo o livro — aprende-se que, não só os seres, mas também as coisas têm sangue: “O fogo ainda se defendia e os objetos crepitavam, encolerizados, quando ele percebeu que não conseguiria mais reaver o sangue das coisas”.
Precisa dizer mais? A flecha alcança o infinito.