Bilhetes, cartões-postais, pequenas e longas mensagens enviadas, enfim todo o material que pode fazer parte da categoria da correspondência, produzido durante um percurso intelectual e literário, pode ser imprescindível para se saber mais, conhecer melhor, especular sobre as obras de um determinado artista, seja ele poeta, escritor, pintor.
Nesse sentido, o acervo epistolar, visto também pelo estudioso como um material de fonte primária, pode ser um grande “baú”, no qual estão “escondidos” os diferentes caminhos trilhados, as dúvidas, o diálogo com outros artistas, as confidências. Na verdade, esse material de primorosa importância pode ser visto como elemento integrante do “laboratório do escritor”. Um espaço que faz parte do pensar e da construção literária, que pode até tratar e documentar a gênese, as idas e vindas, o início e o fim, os passos da criação e construção literária. Processos que levantam questões em relação à forma, à estrutura, ao conteúdo, ao posicionamento dos escritos, às suas escolhas, sem contar toda a rede de relações que pode ser mapeada a partir da correspondência.
A amizade literária pode ser entendida em dupla feição, ora ligada ao relacionamento afetivo entre escritores, ora imaginada por autores que buscam afinidades entre sua produção literária e a de seus contemporâneos, mesmo que não tenham trocado experiência (…). A correspondência tornou-se veículo eficaz entre os rituais de consagração do autor na modernidade, sobretudo se este participava do grupo formado por Mário de Andrade e seus colegas de geração […].
É o que diz Eneida Maria de Souza, organizadora do volume Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa,o terceiro da coleção de correspondências de Mário publicada pela Edusp e pela editora Peirópolis (os dois anteriores foram Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, organizada por Aracy Amaral, e Mário de Andrade e Manuel Bandeira, organizada por Marcos Antonio de Moraes). Trata-se de um material extremamente rico, e que até julho de 1997 estava “lacrado”, impossibilitado de ter qualquer tipo de tratamento, a pedido do próprio Mário, no intuito de preservar a intimidade dos remetentes e destinatários.
Como se sabe, a abertura da correspondência só podia ser feita 50 anos após a morte de Mário, ocorrida em 1945. Até então a família lacrou todas as pastas que ficaram por um tempo na casa da Rua Lopes Chaves. Em 1968, a biblioteca e a coleção de artes plásticas de Mário foram adquiridas pela USP para o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Logo depois, a família doou para o IEB o arquivo, as peças de folclore, a máquina de escrever e a imaginária religiosa. Assim, a partir de 1997, com a finalização do trabalho de catalogação, o IEB abriu ao público o acervo. Dando uma olhada, mesmo que rápida, percebe-se que Mário era, sem dúvida, um correspondente efervescente, que viu nesse meio de comunicação uma forma de travar diálogos, falar de si, discutir sobre literatura e questões do seu tempo, dentro e fora do âmbito literário. A coordenação editorial apresenta da seguinte forma a coleção:
Sua correspondência ativa, que se pode igualar, em termos de valor, à de grandes autores da epistolografia universal, vem sendo gradativamente conhecida. As edições de cartas de Mário têm suscitado grande interesse, não apenas de estudiosos da monumental obra do polígrafo, como de um público mais amplo.
Se no primeiro volume da coleção, Mário-Tarsila, é possível identificar o interesse pelas tendências artísticas, mesmo em âmbito internacional, sem deixar de lado a intensa preocupação pela arte e cultura brasileiras, no segundo, Mário-Bandeira, apresenta-se um diálogo cúmplice entre dois grandes poetas, que trocam idéias sobre poesia, sobre a evolução da arte, a vinda de Marinetti ao Brasil e muitos outros assuntos. Esse terceiro volume, como os demais, é fruto de um trabalho de pesquisa e é apresentado ao público numa minuciosa edição, como ressalta Wander Melo Miranda, na orelha. Minuciosa em vários sentidos, desde o primeiro texto que trata da Coleção Correspondência de Mário de Andrade, passando por uma espécie de gênese do terceiro volume, por uma seleção bibliográfica de textos de referência sobre Mário e Henriqueta, pelas notas cuidadosas que acompanham as fotos e as cartas, tecendo todo um (con)texto para o leitor.
Intimidade crescente
A presente edição da correspondência trocada, durante 1939-1945, recupera e complementa o trabalho já iniciado em 1990, com o livro Querida Henriqueta — Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, organizado pelo padre Lauro Palú e publicado pela José Olympio. No intuito de reunir e tecer os fragmentos dessa conversa epistolar, a edição de 1990 sofreu algumas alterações: a introdução e a cronologia foram suprimidas e foram incluídos fac-símiles e novos documentos.
A Dona Ausente é o título do texto de Eneida Maria de Souza que introduz o diálogo epistolar entre Mário e Henriqueta. Bastante sugestivo, que resgata o texto de Mário, O seqüestro da Dona Ausente, apresentado em 1939, na conferência realizada em Belo Horizonte e posteriormente publicado, em 1943, na revista Atlântico, com o título A Dona Ausente.
Poucas interlocutoras femininas teve Mário de Andrade, por pertencer a um círculo literário dominado por escritores, no qual a participação da mulher no espaço público era bastante limitada. Entre as destinatárias do morador da Rua Lopes Chaves, Henriqueta Lisboa ocupou lugar de destaque, embora tenha usufruído da companhia do escritor em seus últimos anos de vida (1939-1945).
É interessante perceber como, ao longo do tempo e dos diálogos, varia o grau e a relação de intimidade, que pode ser identificada na forma com a qual Mário se dirigia a ela: “Henriqueta”; “Henriqueta querida”; “Minha querida Henriqueta”, “Minha ingrata e sempre lembrada Henriqueta”. Ou ainda, frases como: “Dessa vez é você quem me deve carta, sua ingrata. Recebi seu incrível telegrama de felicitações, fiquei comovidíssimo, palavra”.
Se se pensa no diálogo do autor de Macunaíma com figuras femininas, pensa-se quase imediatamente em dois nomes, que por sua vez são emblemáticos do modernismo: Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Um outro nome que também logo vem é o de Oneida Alvarenga, discípula de Mário, que manteve um troca de cartas com o professor, orientador e amigo mais experiente. Nesse caso, o que se tem é um relacionamento de tipo mais profissional. Se o diálogo com Anita Malfatti e Tarsila do Amaral se dá num período de euforia, ligado também a toda a efervescência da Semana de Arte Moderna, aquele com Henriqueta Lisboa é perfilado por um momento bem diferente. Seguindo as palavras de Eneida Maria de Souza: “Mário conhece Henriqueta em 1939, quando a euforia modernista já havia se extinguido e o escritor vivenciado momentos de decepção no campo pessoal e político”. Affonso Romano de Sant’Anna, por sua vez, coloca um comentário no seu blog, afirmando:
Para quem tinha uma noção arlequinal e solar de Mário, agora surge um Pierrô lunar. Onde havia alguém que anteriormente dizia: “Eu fiz da minha vida um rasgo matinal” e “eu me dei um destino”, agora surge o melancólico que diz: “Saí sem rumo, indestinado… gratuito e amoral… e a noite me anulou no seu mistério”.
Um período aquele vivido por Mário que se caracteriza de fato por uma reflexão do seu percurso e das suas buscas. A correspondência que chega agora ao público em geral mostra as dúvidas sobre o presente, o descontentamento com a guerra e as mudanças políticas da ditadura Vargas; enfim, outro Mário, mais maduro.
Esse material epistolar, com certeza, é de importância única para o maior conhecimento da figura desse intelectual brasileiro da primeira metade do século 20. Em Os bastidores desta edição, é colocada para o leitor a parceria realizada entre o IEB, com o acervo Mário de Andrade e a UFMG, e com o Acervo dos Escritores Mineiros (http://www.ufmg.br/aem). No Arquivo Mário de Andrade, na série Correspondência passiva lacrada, estão conservados 40 cartas, 13 bilhetes, 8 telegramas e 2 cartões-postais enviados por Henriqueta. No Arquivo Henriqueta Lisboa, na série Correspondência pessoal estão conservados 42 cartas, 4 bilhetes, 2 telegramas, cópias datilografadas de 34 poemas dela enviados a Mário, com comentários a lápis dele. A correspondência de Henriqueta Lisboa ainda conta com trocas epistolares entre ela e Guimarães Rosa e a chilena Gabriela Mistral.
Certamente, nesse diálogo, antes disponível só nos arquivos, mas que agora poderá ter um público bem maior, reside uma das funções primordiais, e talvez mais antigas, da escrita: a reflexão. O exame interior, que à primeira vista pode parecer estranho, devido às estéticas e aos projetos literários diferentes de Mário e Henriqueta, tem nesse material o testemunho da cumplicidade existente entre os dois; confirmada pelo tom de algumas cartas e pela abertura que é dada quando da troca recíproca de alguns textos. Uma espécie de comunhão, agora pública.