O ato surrealista mais simples consiste em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto for possível, contra a multidão. Quem jamais teve ganas de assim liquidar com o sistemazinho de aviltamento e cretinização em vigor tem um lugar marcado no meio dessa multidão, com o ventre à altura de um cano de revólver.
Breton, Segundo manifesto do surrealismo
Capítulo 1
Faca sem lâmina à qual falta o cabo
Essa concepção do escritor alemão Georg Lichtemberg, presente no seu catálogo de objetos absurdos, de 1798, é sem dúvida precursora dos ready-mades de Duchamp e dos objetos surrealistas. Faca sem lâmina à qual falta o cabo também é, em certo sentido, a melhor definição do que foi o movimento surrealista brasileiro: mera miragem de marinheiros de primeira viagem.
“Do surrealismo literário no Brasil quase se poderia dizer o mesmo que da batalha de Itararé: não houve” — a tirada espirituosa de José Paulo Paes mexeu com os brios de muita gente. Sérgio Lima e Floriano Martins, em nome dos ofendidos, responderam ao ensaio O surrealismo na literatura brasileira, em que Paes traça de maneira mais ou menos tosca o mapa dessa batalha que “não houve”, com os recentes A aventura surrealista e O começo da busca. Na primeira obra, Lima, convicto de que existiu sim atividade surrealista no nosso modernismo e de que sua história, até agora oculta, precisa ser urgentemente reconstituída antes que se perca, defende apaixonadamente a idéia do surrealismo policêntrico contra a do surrealismo histórico. No seu livro, bela coletânea de poemas latino-americanos, Martins defende a mesma postura com igual garra e determinação. A estratégia de ataque adotada por Lima e Martins é a mesma de Paes. Ambos, na falta de manifestos e de grupos formalmente constituídos na terra brasilis, alinham os nomes dos combatentes individuais que, em nossas artes, teriam sido tocados pela ideologia dos rebeldes de Paris.
Antes de continuar, em nome ao menos da objetividade, é bom que eu deixe clara minha posição nesse cipoal. Não acredito na idéia do surrealismo policêntrico e atemporal, apesar de reconhecer ser esta a mais difundida e aceita no mundo, graças a intelectuais do porte de Aldo Pellegrini e Octavio Paz, que a defenderam durante toda a vida. Da mesma maneira que Maurice Nadeau, na sua História do surrealismo, concebo o surrealismo como um movimento especificamente francês, localizado historicamente nas décadas de 20 e 30, cuja essência respondia diretamente a questões específicas surgidas nesse local, nessa época: a Primeira Guerra Mundial, A Revolução Russa, o chamado à ordem nos países em reconstrução e a ascensão do fascismo na Europa do entre-guerras. Entendo que o que se convencionou chamar de surrealismo português, mexicano, argentino, chileno, brasileiro etc. trata-se de algo completamente diverso do surrealismo francês, o que torna essa locução um pleonasmo.
Mesmo me aproximando mais da concepção de Paes do que da de Lima e Martins, não posso deixar de notar naquela vários fios soltos, várias proposições mal resolvidas dentro de sua própria lógica. Ao contrapor o “surrealismo escolástico, oficial e histórico”, de Breton, ao que entende por “surrealismo difuso, oficioso, sem doutrina ou preceptística claramente definida”, de muitos autores latino-americanos, em seu ensaio Paes mistura certa liberdade conceitual a meu ver ingênua (talvez por ter-se aproximado demais do jovem Antonio Candido de Surrealismo no Brasil, em que este resenha O agressor, de Rosário Fusco) com ausências gritantes (Qorpo Santo e Campos de Carvalho curiosamente não são citados nem uma vez!). Antes de mais nada, é bom que se diga que a leitura de Candido sobre O agressor é equivocada justamente por não ser este um romance surrealista, dada sua metódica e planejada elaboração.
Fusco, da mesma maneira que Kafka e Joyce, apesar do mergulho nas regiões mais profundas do inconsciente jamais produziu literatura que se identificasse com a estética de Breton, Soupault, Aragon, Péret, Desnos e os demais membros do grupo parisiense. O erro está na abertura proposta por Paes e outros, para quem, de modo rasteiro, se num determinado texto ficcional há componentes oníricas e associações extravagantes que rompam com a ordenação lógica, então o surrealismo necessariamente tem de estar presente. Esquecem-se de que é a liberdade estabelecida antes mesmo da redação do texto que vai determinar esse vínculo. Se, de um lado, os surrealistas abominam a forma romanesca, tolerando apenas alguns exemplos do romance gótico, de outro, suportam menos ainda o aperfeiçoamento do texto por meio de sucessivas correções e revisões. Uma página do Finnegans wake — romance noturno matematicamente construído —, por exemplo, por mais alucinada que seja, não é uma página concebida em nome da liberdade absoluta, visto ter sido corrigida e aprimorada muitas e muitas vezes antes de ir ao prelo. O mesmo pode ser dito d’O agressor e d’O processo, mas, tecnicamente falando, não dos romances de Campos de Carvalho, escritos ao correr da pena no giro de poucas semanas, sem esquemas prévios e sem que, uma vez finalizados, o autor aceitasse mexer nos originais nem mesmo a pedido do editor.
Quando, mais adiante, Paes reforça a distinção entre surrealismo e realismo mágico, é estranho que não tenha percebido que a semelhança maior d’O agressor é com o Ex-mágico, “o livro pioneiro de Murilo Rubião, que antecipou de pouco no Brasil a voga de Kafka e de muito a de Borges, Cortázar e García Márquez”, como reconhece. Também é de estranhar que em nenhum momento um único exemplo da prosa inegavelmente surrealista, como o modelar Peixe solúvel, de Breton, ou O camponês de Paris, de Aragon, seja trazido à cena, para fazer as vezes da baliza sem a qual o julgamento raramente encontra o foco.
Afastar-se demais do surrealismo histórico é o gesto de liberdade a que o ensaísta do surrealismo não tem direito, caso não queira cair num território vastíssimo, em que cabem desde Macunaíma e a poesia necrofílica de Augusto dos Anjos a’O rei da vela, de Oswald, e O dourado papiro, de Sosígenes Costa, títulos citados por Paes. Uma vez nesse território, os matizes fundamentais que tornam a história da arte mais rica desaparecem e o que sobra é a polarização entre a arte regrada, tecnicamente chamada de clássica, e seu oposto, a arte desregrada, por vezes denominada de barroca (ou de maneirista, romântica, simbolista, dadaísta, surrealista e de qualquer outro nome de sentido semelhante que se queira dar), como sugere Robert Curtius, que, em Literatura européia e Idade Média latina, as vê como duas constantes a-históricas, ou supra-históricas, atuando para além dos limites estabelecidos pela cronologia dos especialistas. Classicismo e maneirismo, em verdade, são as duas grandes manifestações do Absoluto na vida e na arte também para Gustav Hocke, aluno e discípulo de Curtius, que, no célebre estudo Maneirismo: o mundo como labirinto, estabelece que o homem e a realidade são bipartidos: de um lado há o belo, o harmonioso e o natural, e do outro, o horrível, o desproporcional e o artificial; de um lado há o teísmo, do outro, o panteísmo, e assim por diante. Para Hocke, noventa por cento do repertório de arte moderna estão decididamente vinculados à linhagem do maneirismo, pautada pelos traços da irregularidade, da libertinagem e do grotesco, em contraposição às linhas mestras do classicismo: regularidade, pureza, conservadorismo.1
Sérgio Lima também incorre em simplificação semelhante, qual seja, o da polarização quase maniqueísta. No primeiro volume de sua empreitada de fôlego, a já citada A aventura surrealista — resposta longa e minuciosa a provocações como a de Paes —, é eloqüente, porém pouco convincente ao defender com furor e paixão o que chama de “a condição policêntrica e multidimensional do surrealismo”, movimento que passaria a ser, assim, de todos nós, brasileiros, argentinos, sul-americanos, europeus, seres humanos. Ao determinar como infundada a defesa do epicentro francês do surrealismo, ou seja, a defesa do surrealismo histórico, Lima propõe algo mais amplo, que abarcaria diversas épocas e lugares: “Epicentrismo é a ação de um epicentro (ponto da superfície terrestre mais próximo ao centro de um abalo sísmico), e portanto modelo de uma irradiação de força ou poder. A recusa do modelo de epicentrismo é a recusa de se designar a voz do abalo, no caso, a intervenção surrealista, como tendo uma única vertente primeira, e não considerar o fato de outros centros de irradiação serem igualmente eqüidistantes de seu princípio sísmico, o qual é diverso, por definição, da circunstância da superfície que o acolhe inicialmente. E mais, o sentido de epicentrismo perpassa o aspecto de uma direção, de um poder (no sentido colonialista), inaceitável em termos mesmos da aventura surrealista.” E mais adiante: “Frisemos: a abordagem do surrealismo, em termos de um movimento com um único centro e inúmeras periferias mais ou menos distantes, mais ou menos interessantes, mas sempre secundárias, omite o fato primordial e dado pela própria história do surrealismo: o de ser uma posição e uma atuação do humano diante da pouca realidade que nos é dada.”
Nesse posicionamento defensivo, em que o surrealismo eterno sobrepujaria o surrealismo histórico, há mais o desenho de como as coisas deveriam ser — a supressão do influxo colonialista, da defasagem econômica entre a América Latina e a Europa, da nossa posição periférica em relação à cultura do primeiro mundo —, segundo o desejo do ensaísta, do que propriamente de como elas são. Mais do que a defesa de equações filosóficas, vejo aí a defesa de posições culturais que favoreceriam a auto-estima do Brasil e dos demais centros secundários. Sempre que são sustentados os argumentos contra a originalidade francesa, parte da dignidade das colônias consegue milagrosamente escapar ilesa. O surrealismo eterno, então, passa a ser algo amplo e extremado (na concepção de Hocke, ele se torna uma das duas possibilidades do Absoluto, justamente a que se opõe ao classicismo), de fundo religioso, assim como o islamismo ou o cristianismo, movimentos que, apesar de em sua origem terem tido um centro, os séculos transformaram numa tendência policêntrica.2
Notas
1. Em seu livro Literatura européia e Idade Média latina, Curtius sugere o emprego do termo maneirismo para caracterizar “todas as tendências literárias que se opõem ao classicismo, sejam elas anteriores, contemporâneas ou posteriores a este período”. Ainda segundo Curtius, “o maneirismo é uma constante na literatura européia” e ”o fenômeno complementar do classicismo de todas as épocas”. Seu ponto culminante revela-se no fim do período da Antiguidade, na Idade Média e ainda no correr dos séculos 16 e 17. “Grande parte do que designamos com o nome de maneirismo”, salienta Curtius, “é denominado hoje de barroco. Este termo, porém, ocasionou tantos equívocos que convirá deixá-lo no olvido. O termo maneirismo, por sua vez, merece a preferência, porque este, ao invés do termo barroco, não implica senão um pequeno número de associações históricas”.
2. Segundo o plano estabelecido pelo autor, A aventura surrealista, quando concluída, terá quatro volumes. Por enquanto, apenas o primeiro foi publicado. Sérgio Lima promete para os próximos — que aguardamos ansiosamente, na esperança de que novos dados sejam postos em discussão — uma História sincrônica na América Latina, Portugal, Espanha e Estados Unidos, com iconografia e uma Cronologia essencial do surrealismo no Brasil, comentada..
Obras citadas
ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Tradução de Flávia Nascimento. Rio de Janeiro, editora Imago, 1996.
FUSCO, Rosário. O agressor. Rio de Janeiro, editora Bhlum, 2000.
BRETON, André. Manifestos do surrealismo. Tradução de Sérgio Pachá. Rio de Janeiro, Nau Editora, 2001.
CANDIDO, Antonio. Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo, Unesp, 1992.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e Idade Média latina. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, MEC, 1957.
HOCKE, Gustav René. Maneirismo: o mundo como labirinto. Tradução de Clemente Raphael Mahl. São Paulo, editora Perspectiva, 1974.
LIMA, Sérgio. A aventura surrealista. Rio de Janeiro, editora Vozes, 1995.
MARTINS, Floriano. O começo da busca. São Paulo, editora Escrituras, 2001.
NADEAU, Maurice. História do surrealismo. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo, editora Perspectiva, 1985.
PAES, José Paulo. Gregos e baianos. São Paulo, editora Brasiliense, 1985.