Com a revolução romântica no início do século 19, alguns escritores começaram a refletir criticamente sobre o próprio fenômeno poético e sua validade histórica. De início, de forma defensiva até, diante do ímpeto materialista da sociedade burguesa. Não por acaso o poeta inglês Percy Shelley escreveria a famosa Defesa da poesia, em 1821. Tratava-se, na origem, de uma resposta ao ensaio As quatro idades da poesia, de Thomas Peacock, por este ter considerado que a poesia não trazia nada de útil e racional ao mundo de então. Shelley dirá, por seu turno, que ela representava não só a expressão vital da imaginação, centrada na linguagem, mas também valeria como instrumento moral e civilizador, capaz de unir os homens.
Na França, Lamartine, nas Primeiras meditações poéticas (1820), destacaria o “dom do entusiasmo” do poeta; preocupar-se-ia também com Os destinos da poesia (1834), certo de que ela seria uma “língua completa e que não morrerá jamais”. Victor Hugo, outro gênio do romantismo francês, tratou de enaltecê-la e a figura civilizadora do vate (“deve conter em si a soma das idéias do seu tempo”) nos prefácios de vários livros, entre outros, Os raios e as sombras (1840) e As contemplações (1856).
Foi, porém, com Charles Baudelaire que a meditação sobre a lírica ganhou relevância verdadeiramente moderna. Tanto nos poemas quanto nos ensaios (O pintor da vida moderna), a questão da modernidade para Baudelaire resultaria da freqüentação da grande cidade (Paris), onde transcorreria o “espetáculo da vida elegante e das milhares de existências errantes que circulam nos subterrâneos”. Para ele, seria na grande cidade que o homem comum experimentaria “o heroísmo da vida moderna”. E, para o artista, residiria ali o desafio de representar a beleza do presente.
Com base na obra de Baudelaire, o filólogo alemão Hugo Friedrich, um século depois, escreveria um dos mais importantes estudos sobre a poesia pós-romântica: Estrutura da lírica moderna (publicado no Brasil em 1978). Considerando o escritor francês como precursor da modernidade lírica, destacaria uma série de traços na produção de vários outros grandes poetas europeus, a partir de 1920, não deixando de reconhecer em Rimbaud e Mallarmé mestres da lírica do nosso tempo. Um desses conceitos é o da tensão dissonante, que teria se tornado, segundo ele, um dos objetivos da arte moderna, ao lado do enigmatismo e da transcendência vazia.
Recentemente, o crítico italiano Alfonso Berardinelli ampliaria algumas das categorias negativas estudadas por Friedrich, identificando outros elementos da lírica pós-romântica, distantes da tensão dissonante de fundo urbano — como em Walt Whitman, por exemplo. Seu livro Da poesia à prosa (lançado, entre nós, em 2007) desponta como obra fundamental no entendimento da poesia moderna.
Também voltado para o tema, dois grandes livros do mexicano Octavio Paz se destacariam: O arco e a lira e Os filhos do barro (reeditados este ano no Brasil). Grande poeta e ensaísta de fôlego, Paz elabora apaixonada reflexão sobre o gênero, tanto sob o aspecto fundador quanto histórico, concentrando-se na permanência da poesia em luta contra a própria modernidade, tensionada entre a negação do passado e a colonização do futuro. Daí a “tradição da ruptura” como estratégia formal e força propulsora das vanguardas poética e artística que marcaram o século 20.
Deslealdade
Vale lembrar, em contrapartida, a obra do inglês Robert Graves, A deusa branca, em que busca resgatar os arquétipos mágico-religiosos da poesia, a fim de demonstrar sua energia intemporal. Toma como base dois poemas galenses do século 13, através dos quais tenta definir a função da poesia, que consistiria na invocação, no fundo, religiosa da Musa, a Deusa Branca. Não deixa o autor de advertir os poetas de hoje sobre a deslealdade para com ela, em razão da dependência material que muitos mantêm com o mundo comercial-industrial. Tal dependência, Graves a chamaria de “rabo da raposa”.
Noutro diapasão, mais propenso a discutir a natureza, suposições e funções da poesia moderna, posiciona-se o crítico Michael Hamburger com o longo e denso A verdade da poesia (escrito em 1968, mas só lançado no Brasil em 2007). Tal qual Friedrich, parte da poesia de Baudelaire a fim de analisar, num espectro bem mais cosmopolita (inclui alguns poemas de Drummond e Pessoa), “as tensões na poesia modernista”.
No Brasil, o estudo e a reflexão sobre o fenômeno poético ressurgem, agora, pelas mãos de Geraldo Holanda Cavalcanti, em A herança de Apolo. Também poeta (além de ensaísta, memorialista e contista), o autor nos oferece uma obra definitiva sobre o assunto. Nela, analisa, sob múltiplos aspectos, o fenômeno poético, a figura do poeta e a construção verbal do poema. Resultado de décadas de pesquisa, Cavalcanti colige um robusto inventário de opiniões e concepções de autores, tanto do Oriente quanto do Ocidente, bem como da antigüidade aos dias de hoje.
Trata-se, sem dúvida, de trabalho imprescindível aos leitores do gênero, aos professores de teoria literária e de oficinas de poesia e naturalmente aos próprios poetas, iniciantes ou não. Dividindo sua obra em três partes — Poesia, Poeta, Poema —, Geraldo Cavalcanti soube ampliar de forma superior o estudo em torno desses três pólos indissociáveis do acontecimento literário. Como afirma Eduardo Portella, em prefácio ao livro, o autor “mostra os vários cognomes do poeta, mostra, sobretudo, as variações viscerais dessa interminável peripécia, harmoniosamente distribuída entre a poesia, o poeta e o poema”.
Ao recorrer à vasta gama de poetas e pensadores, não deixa, porém, de expressar a própria visão do tema enfocado. Invariavelmente, sua mirada se volta para reforçar a linha crítica que atravessa toda a obra, conferindo-lhe unidade e sustentação — a desmitificação do poeta e da própria poesia. Em outras palavras, o autor busca humanizar Apolo e a prática da poesia, afastando a idéia (algo romântica) de que se trata de uma dádiva da natureza e/ou dos deuses, cercada de mistério e transcendência, só acessível a alguns eleitos, dotados de especial criatividade e comportamento social não raro fora dos padrões.
Consciente do caráter polimórfico da poesia, Cavalcanti trata de transcrever, logo na primeira página, a advertência de Alfonso Berardinelli, segundo a qual “definir a poesia, traçar-lhe as fronteiras, foi um dos empreendimentos mais apaixonantes e malogrados do pensamento estético”. Não sem razão, o autor afirma que cada poeta tem a sua própria concepção artística, isto é, uma compreensão particular do gênero, tão variável quanto a sua natureza e temperamento, não deixando de se circunscrever, por sua vez, aos vários momentos da cultura e da arte.
Tendo o cuidado de não confundir poema com poesia, o autor passa a citar diferentes concepções deste termo. Uma das primeiras e mais longas tentativas, nesse sentido, vem de Octavio Paz, em O arco e a lira, cuja frase inicial assevera: “La poesia es conicimiento, salvación, poder, abandono”, para em seguida sugerir, já em versos, que ela é: “encarnación/ del sol-sobre-las-piedras en un nombre”. Já para Ungaretti, a poesia representa uma “limpida meraviglia/ di um delirante fermento”. Para Hermann Broch, seria uma “fuga imóvel”; para Gide, uma “magia que consiste em despertar sensações”; enquanto, para Heidegger, “a instauração do ser pela palavra”.
Depois de discutir a sua natureza, invocando outros autores (Bachelard: “A poesia é uma metafísica instantânea”), passando por texto budista (“súbito momento de irreversível intuição”), Cavalcanti trata da relação da poesia com a beleza, bem como da sua passagem para o poema, enquanto realização verbal, para concluir com o crítico Antonio Carlos Secchin: “A poesia é um hóspede invisível; só percebemos que visitou, num frêmito, o corpo do texto quando já foi embora; o vestígio da sua passagem é o poema”.
Em seguida, o ensaísta passa a tratar das possíveis diferenças entre prosa e verso, assim como das múltiplas funções da poesia e da sua relação com a música, com as musas, com a metáfora, com a filosofia, com a religião e a ética, valendo-se de importantes poetas e pensadores, capazes de oferecer visões múltiplas, quando não complementares, sobre cada um desses fascinantes temas.
Lucidez e esperança
Não menos rica se mostra a segunda parte, voltada para o poeta. Aqui as considerações alcançam patamares surpreendentes. A figura do fazedor de versos é vista sob diversos ângulos, que no fundo refletem a própria condição humana e as circunstâncias históricas e sociais que lhe modulam comportamento, valores e atitudes.
Visto, nos primórdios, como ser divino, sacerdote, vate e profeta, vidente e visionário, possuído, mágico, por vezes louco com mania de grandeza, um criador; passando a ser, no romantismo, um sonhador, herói, predestinado, místico e sofredor, solitário e incompreendido; até chegar, no modernismo, a fingidor, entre outras tantas facetas, Geraldo Cavalcanti volta-se com especial empenho para aquela que decerto terá sido a mais polêmica e decisiva faceta para o poeta do século 20: ser (ou não) politicamente engajado (com a Revolução) e socialmente comprometido em denunciar as iniqüidades do sistema (capitalista) e de regimes totalitários. Trata-se de momento alto da obra, pois o autor, de forma lúcida e bem fundamentada, se dedica a mostrar, em quase cinqüenta páginas, os acertos e sobretudo os equívocos do comprometimento ideológico-partidário e seu reflexo na criação literária.
Impossível nestas poucas linhas dar conta do quadro complexo e não menos polêmico da questão. Geraldo Cavalcanti começa por relembrar Brecht, quando este, em 1939, às vésperas da Grande Guerra, afirmou: “Conversar sobre árvores é quase um crime/porque implica silenciar/a iniqüidade”. Não deixa de se referir, adiante, à conhecida frase de Adorno, ao término dessa mesma Guerra: depois de Auschwitz não é mais possível a poesia. Frase tão radical certamente teve o propósito de denunciar o horror que foram os campos de concentração nazistas e o holocausto.
O ensaísta cita também Carlos Drummond de Andrade, que, em 1948, “declina a responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista”, prometendo ajudar a “destruí-lo”. Em seguida, critica, por outro lado, os “inocentes úteis”, que aprovaram “a violência contra a própria palavra, território por excelência do poeta”. Foi o caso de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que se negaram a condenar o Gulag, as perseguições a intelectuais e escritores, com aprisionamentos e internações forçadas de muitos deles em clínicas psiquiátricas na ex-União Soviética.
A propósito das relações problemáticas dos escritores com o regime comunista, Cavalcanti, que serviu em Moscou como diplomata nos anos de 1960, nos dá importante testemunho daquela hora, mas também reconta a trajetória trágica de um punhado de poetas brilhantes (Khliébnikov, Blok, Mandelstam, Iessiênin, Pasternak, Akhmátova, Tsvietáieva), sufocados pelo regime, nas décadas de 1920/30, com destaque para o caso de Maiakóvski, reexaminado em quinze candentes páginas. Não deixa o autor, porém, de se referir aos poetas comprometidos com guerras no século passado (Péguy, Apollinaire, Éluard), bem como aos que dela sofreram terríveis conseqüências (Celan e a “Todesfuge”).
Ao concluir a parte referente ao engajamento do poeta, o ensaísta pernambucano estabelece importante distinção entre poesia engajada e poesia social. A primeira teria por “musa a Revolução”, a qual, ressalta, “dificilmente produzirá grandes poemas, pois a musa revolucionária está preocupada com a mensagem e o efeito prático das palavras”. Já a poesia social expressaria “a responsabilidade do poeta diante das iniqüidades sociais, econômicas e políticas”, sem perda da dimensão estética da linguagem. Cita, nesse caso, alguns poetas brasileiros: Castro Alves, nos poemas anti-escravagistas; Drummond, com as obras Sentimento do mundo, José e A rosa do povo; João Cabral, com O rio e Morte e vida Severina, e Ferreira Gullar, com Dentro da noite veloz.
Nesta parte da obra, GHC aborda, ainda, a relação do poeta com o cotidiano, a velhice e a morte; discute também a situação dos bad poets, ou seja, os poetas de baixa tensão, lírico-amorosos, que constituem maioria em qualquer país. Por fim, relembra, em “O rei está nu”, as duras opiniões que alguns críticos (Gombrowicz, Caillois) e filósofos lançaram contra a pobre figura do poeta (Nietzsche: “Estou farto dos poetas, dos antigos e dos novos. Para mim, eles são todos superficiais”; Cioran: “O poeta é um pilantra que se esforça em buscar que dele se compadeçam, empenha-se em perplexidades e as procura por todos os meios. Depois a posteridade ingênua tem pena dele.”).
O capítulo dedicado à relação entre o poeta e a morte ganha, aqui, excepcional relevo quando o autor trata do suicídio. E o faz analisando, creio que pela primeira vez, a obra de duas poetisas suicidas, Ana Cristina César e Maria Ângela Alvim, depois de deter-se em alguns versos de Sylvia Plath, na esteira das pesquisas realizadas pelo professor James Kaufman. Para tanto, Cavalcanti comenta as várias passagens/imagens que de um modo ou de outro falam de morte na obra das brasileiras. Nas duas escritoras, conclui, a poesia “é, todo o tempo, a crônica de um suicídio anunciado”.
Por último, ao tratar do poema enquanto realização formal, Geraldo Cavalcanti não deixa de se ater a aspectos técnicos tradicionais (rima, verso livre, ritmo, musicalidade, etc.), mas também se dedica de modo especial aos problemas da tradução, invocando a opinião de vários escritores sobre seus limites e possibilidades. Cavalcanti adverte com acerto que “na poesia, a literalidade deve ser substituída pela imaginação criativa, vinculada ao sentimento de responsabilidade”.
Tratando dos temas preferenciais do poeta, destaca dois: o corpo da mulher amada e a lua. Quanto ao primeiro, relembra as descrições efetuadas por vários autores, que vão dos cabelos aos pés. Muitos poetas aqui comparecem, mas sente-se a ausência de Vinicius de Moraes, com o famoso poema Receita de mulher. Quanto ao segundo tema, remete ao estudo de Graves, A deusa branca, “dispensadora das fontes da vida e da morte, inspiradora e iniciadora”, desde a infância da humanidade, e finaliza ao citar a imagem dessacralizadora de Nicolas Guillén, que via a lua com “el rostro comido por un acné”.
Ao lado dos aspectos tradicionais do poema, Cavalcanti empreende notável estudo crítico a respeito da reinvenção da linguagem, iniciada com as vanguardas do início do século 20, como futurismo, dadaísmo, surrealismo, até chegar às experiências mais recentes e radicais, advertindo, porém, que toda invenção em arte há de ser “transitiva”, capaz de intensificar a percepção da realidade social e de se inserir “na corrente da literatura”. E indaga, lúcida e oportunamente (neste momento em que se fala tanto em “antipoesia” como valor que paradoxalmente a própria poesia teria de atingir): “Que grau de deformação pode um gênero literário suportar sem mudar de categoria?”.
Pergunta-chave, sem dúvida, quando a modernidade líqüida (Bauman) e a diluição dos gêneros e das formas parecem corresponder à velocidade atordoante da circulação e da reciclagem das coisas. O autor, porém, sustenta a esperança de que “enquanto houver literatura, haverá poesia”.