Em O doente, André Viana narra a maior parte da história baseando-se na oralidade. Não que ele recorra ao conhecido artifício dos velhos contadores de histórias, como faz Guimarães Rosa por intermédio de Riobaldo, em Grande sertão: veredas. A narrativa de Viana começa com a palavra “transcrição”, numa página em branco; na seguinte, seguem-se travessões que se repetem por seis linhas, só então aparece a primeira palavra do romance, a preposição “de”. Após a incomum abertura, o leitor depara-se com o seguinte trecho:
Começou a gravar? Então antes eu gostaria de ler uma frase pra você. Se um dia alguém escrever minha história, seria uma possível epígrafe.
Logo, trata-se de uma gravação, e os travessões significam aquele espaço de tempo durante o qual esperamos ouvir algum som após ligar o aparelho. A história, no entanto, ainda não começa. Lemos (sempre como se estivéssemos ouvindo) apenas comentários desse irônico protagonista. A narrativa, quase durante todo o livro, segue a estrutura de uma gravação sem a consequente edição, com espaços em branco repetindo-se ainda com mais travessões e algumas páginas em branco, ou com apenas duas ou três palavras. No final, são transcritas duas cartas, que completam o sentido da história.
O protagonista, cujo nome jamais sabemos, ao invés de buscar um psicanalista, como ele mesmo afirma (“No fundo, acho que não faço análise não porque não acredito, mas justamente porque tenho medo do que posso encontrar.”), procura alguém de sua profissão, um jornalista, e conta a ele sua vida. Este interlocutor, que está ali porque adora ouvir histórias, não se expressa em momento algum. Tudo o que sabemos a seu respeito é através dessa voz, que nem podemos afirmar ser de um narrador, mas simplesmente a voz de uma gravação. Assim, sempre na casa desse excêntrico personagem, o jornalista escuta e grava tudo, a varar madrugadas, regadas a muito uísque.
Mas não se trata de uma narrativa vã, ou mesmo festiva. No início, já se percebe o tom trágico. A voz da gravação diz: “Vamos lá. Se um dia eu escrevesse minha história, ela teria como ponto de partida a morte do meu pai. No dia do meu aniversário de onze anos”. Também não significa que a história desse personagem será piegas ou mesmo não terá valor diante de tantas histórias tão ou mais trágicas que existem por aí. Mas sim pela importância dada à singularidade e ao fato de que cada história de vida seja, talvez, se não a mais importante, pelo menos digna de ser contada.
Além de muitas referências à psicanálise, o narrador cita vários livros de literatura, de filosofia, e filmes famosos. Há também uma trilha sonora que acompanha o diálogo entre os dois personagens. A principal referência literária é o romance A montanha mágica, de Thomas Mann (1875-1955), incluindo a epígrafe do livro de Viana: “O homem é essencialmente um enfermo”, que aponta para o tema principal do romance.
O tema da doença também é recorrente no livro de Thomas Mann. Mas não porque se trata de um romance ambientado numa estação de cura de tuberculosos. Quem se destaca no livro do escritor alemão é Hans Castorp, chamado de filho enfermiço da modernidade por Setembrini, um intelectual de moldes clássico que sucumbe em consequência da mudança de valores provocada pelo alvorecer da modernidade. Voltando ao livro de André Viana, não mais estamos diante dessa mesma modernidade, mas num momento histórico em que todas as possibilidades discutidas no livro de Mann já se encontram esgotadas. O romancista nascido em Lübeck, ganhador do Nobel em 1929, ainda moldava uma sociedade em que os seres humanos tinham como suporte existencial os conceitos clássicos da filosofia e da literatura, mas que desaparecem ante a inclemente violência provocada pela Primeira Guerra Mundial.
Fim das utopias
Quanto ao livro de Viana, o ponto alto é a discussão da doença gerada pelo esgotamento de uma modernidade tardia e o fim de suas utopias. À medida que o autor introduz o cinema no romance, percebe-se a necessidade de criação de novas mitologias que gerariam sentidos outros à existência, sobretudo num momento de predomínio da cultura de massa, cujo único sentido é o elogio ao consumo.
O doente, no decorrer da voz narrativa, envolve outros personagens. Além do protagonista, um alcoólatra inveterado que também precisa fazer uso de ansiolíticos, há sua mãe, mulher profundamente depressiva (principalmente após a morte do marido), e seu irmão, que na adolescência recebe o diagnóstico de esquizofrênico.
Toda boa literatura é desagradável. No livro de Viana, isso acontece quando a narrativa toca o tema da loucura e suas consequências na família do narrador. Mas Viana propõe uma espécie de solução que ameniza as características pessimistas do romance. Tal perspectiva acontece quando sabemos, sempre pela voz desse estranho narrador, sobre Charles Fourier (1772-1837).
Tal menção estende-se por várias páginas e é introduzida como por acaso, durante o diálogo entre o protagonista e seu interlocutor. As páginas são reveladoras para quem não conhece o pensamento e a obra deste autor francês considerado por muitos um socialista utópico. Já que o assunto do livro de Viana é sobre uma espécie de doença provocada pela civilização, Fourier, muito antes de Freud e Reich, propõe uma revolução sexual, mas cujo princípio era a abolição da monogamia e a experiência de um prazer praticamente total. André discute a falsa permissividade da sociedade contemporânea, e até mesmo a falaciosa proposta de realização do desejo colocada pela psicanálise. Ainda citando Fourier, o protagonista afirma: “Se não é geral, a liberdade é ilusória”, ou “Não é de moderação que são feitas as grandes coisas”. Inclusive há uma referência a um livro de Leandro Konder: Fourier, o socialismo do prazer. Mas o protagonista não defende nenhum tipo de socialismo, refere-se apenas à realização do desejo sexual e à formação de vários outros tipos de família, todos fora dos padrões vigentes.
A morte do pai, como tema da psicanálise, também é aprofundada no livro. O personagem refere-se ao assunto diversas vezes e fala do peso que precisa carregar por herdar os problemas que passam a lhe afligir a partir do momento em que sua mãe já não dá conta de manter o pequeno negócio da família nem de cuidar do filho doente. Na verdade, ao contrário do que esta morte significaria em termos simbólicos (pois a morte do pai proporcionaria o desenvolvimento e independência do filho), aqui ela aparece só como dor e obstáculo ao prazer.
O romance acaba por discutir o adoecimento de toda a sociedade, que muitas vezes é mascarado pelos excessos, sejam eles a partir do álcool, das drogas e até mesmo dos medicamentos antidepressivos, considerados por muitos como solução à dor existencial. A negação da liberdade e a não realização plena do amor, ainda segundo o narrador, seriam as causas de uma vida arruinada, condenada às amarras da doença e do enlouquecimento.