O filme Persona, de Ingmar Bergman, trata da relação complementar entre duas mulheres cuja dependência recíproca cresce a tal ponto que suas personalidades parecem dissolver-se uma na outra. Bergman era fascinado por espelhos e duplos. Neste filme, há uma cena na qual a protagonista, uma atriz que perdeu a fala, ouve um longo diagnóstico de sua terapeuta sobre as razões de seu mutismo. A médica afirma que a causa da perda súbita da voz estaria no cansaço da permanente dissimulação, a falácia cotidiana para adequar-se às normas, para não chamar a atenção, para agradar aos outros. Mas, apesar de demonstrar compreensão para com o dilema da paciente — “Você acha que não entendo? O sonho impossível de ‘ser’. Não ‘parecer’, mas ‘ser’ você… o abismo entre o que você é para si e para outros” —, em determinado momento ela dá o veredito: “Você pode se fechar, se trancar. Assim não tem que interpretar papéis, fazer caras ou falsos gestos. Mas veja, a realidade não coopera. Seu esconderijo não é impermeável. A vida penetra em tudo. Você é forçada a reagir”.
Até que ponto é possível esconder-se de si mesmo? Este também é o mote de Cloro, terceiro romance de Alexandre Vidal Porto. Neste livro, como já nos diz o texto de apresentação, é uma tragédia familiar que desestrutura a vida burguesa de um homossexual no armário. Constantino, o protagonista, um advogado-bem-sucedido-casado-dois-filhos, consegue manter sua homossexualidade escondida de si mesmo por mais de 50 anos, quando, de repente, perde o filho num violento assassinato. E aqui temos o (seu) momento em que “a vida penetra em tudo”. Como num castelo de cartas, a frágil construção de seu conto de fadas pessoal desaba. Esta imagem, aliás, pode ser entendida no sentido literal: a primeira confrontação com a homossexualidade acontece quando ele vê uma cena erótica de ménage à trois entre dois homens e uma mulher na série televisiva House of cards. A partir daí, as fantasias, até então enfurnadas em algum fundo falso de seu subconsciente, assomam com força equivalente à sua longa opressão e não podem mais ser detidas. Ele passa a levar uma vida dupla que infelizmente não dura muito tempo, pois, pouco depois de viver seu primeiro romance secreto com um homem, ele mesmo sofre um incidente trágico — um AVC fulminante numa sauna gay no Japão — que põe um fim abrupto a sua vida. E é aqui que começa o livro, a história é narrada em retrospectiva pelo protagonista morto.
O outro e eu
A primeira parte é intitulada EU, e nela será apresentada a biografia de Constantino enquanto prontuário de seus tropeços até a aceitação definitiva da homossexualidade. A própria palavra “Eu” já expressa uma ideia — e uma vontade — de individualidade que, no entanto, só pode existir em oposição ao outro. O outro aqui é tanto aquele que ele tinha sido, como também os outros ao seu redor, que ganham voz na segunda e última parte deste curto romance-reflexão sobre a dor e a delícia de não ser quem se é.
“Muitos acham que fui um canalha” são as primeiras palavras dirigidas a nós por Constantino, que aproveita o tempo enquanto espera no limbo para fazer um balanço de sua vida. “Quero me distanciar de mim mesmo e me analisar como se eu fosse outro — como nunca fiz. Mostrarei minhas fraquezas e avaliarei os meus limites.” A morte aqui, enquanto distanciamento redentor, funciona como artifício para um “eu” que se vê de fora e esboça a si mesmo como uma obra, um produto cuja melhoria é almejada a posteriori.
Assim, acompanhamos o protagonista que, quase como um apêndice de si mesmo, faz um inventário de seus percalços em busca de reconhecimento e (auto) absolvição post mortem. Logo nos primeiros capítulos, intitulados “Identificação do corpo” e “Identificação da alma”, rastreamos com ele a memória à procura dos momentos cruciais que levaram a sua existência a tomar o rumo que tomou e por isso gravaram-se como lembranças de descarrilhamentos. O primeiro, lá no início de sua biografia, é o que inspira o título do livro: o cheiro de cloro das aulas de natação da infância, quando o menino Constantino, carregado pelos braços musculosos do professor, deixa-se levar na corrente do primeiro desejo. (Aqui me lembrei da cena “El primer deseo”, do novo filme de Almodóvar, Dor e glória).
Mas há também a recordação traumática — e por isso decisiva — que levará à negação deste mesmo desejo para o resto da vida do protagonista: a agressão na porta da escola por um colega que o xinga de bicha, lhe dá um soco e o ridiculariza na frente dos outros.
Foi uma ofensa definitiva, que ficou ecoando para sempre na minha cabeça. Ele arremedava os meus gestos, ria de mim, me ridicularizava. Fez com que eu sentisse medo e vergonha. Tornou minha vida um inferno. Cheguei a pensar em suicídio. Eu tinha oito anos.
Na sequência, o protagonista nos leva a revisitar os momentos de uma vida marcada pela desaceitação que levaram a erros, mas também a acertos. Por exemplo, o casamento que, visto de fora, pode parecer só “fachada”, mas tem no seu cerne tudo o que Constantino precisa para sua integridade e que crê necessário para sua realização pessoal — fora sexo. Mas quantos casais também não vivem com pouco ou nenhum sexo? Assim, a relação com Débora, a esposa, revela-se complementar (ela também recalca problemas com sua sexualidade), solidária e quase perfeita, não fosse o fato de que negar a natureza da própria libido (no caso dele), uma força destrutiva muito maior do que simplesmente abster-se de sexo (no caso de Débora). A grande tragédia de Constantino é que a sua “mentira” é edificada sobre pequenas verdades — posto que de fato ama Débora e sua vida em família, que formam um lado essencial de sua identidade. Como abdicar de sua vida para viver uma outra vida? Constantino personifica o paradoxo daqueles que, com medo de perderem tudo e serem ostracizados, ostracizam a si mesmos, como ele reconhece em determinado momento da história:
É engraçado: eu não queria ostracismo, mas acabei ostracizando minha própria natureza, porque eu tinha medo dela. As pessoas se lembrarão de mim, terão uma imagem de mim, só que não serei eu. Será o depois de mim. Foi isso o que construí.
Numa entrevista, Alexandre Vidal Porto conta que, para este romance, se inspirou num artigo sobre um homem que morreu ao fugir de uma sauna gay pela janela porque achou que a polícia estava no local e ficou com medo de ser descoberto. O livro, que tem traços autobiográficos, compromete-se com um ativismo LGBT. Segundo o próprio autor, ele pretende dar visibilidade aos homossexuais, pois sabe, de experiência própria, dos danos da abnegação. Neste sentido, Vidal cumpre o que se propõe, lançando mão de uma escrita firme e fluida, ainda que por meio de uma narrativa quase sempre unilateral e sem inovações no plano da linguagem, detendo-se no fabular em primeira pessoa do protagonista. Somente na segunda parte, que não chega a tomar nem um terço do livro, é que ele abre o texto para as vozes dos “outros”: a esposa, o último amante, os funcionários da Embaixada no Japão, o homem que o encontra morto na sauna. Esta última parte é consequentemente mais rica em perspectivas e literariamente mais dinâmica, até mais divertida, cumula o drama e o ridículo da dissimulação no motivo tragicômico da morte súbita na sauna gay, uma imagem simples e forte que fala por si, revelando toda a dimensão do dilema da vida dupla, como se dissesse: “seu esconderijo não é impermeável. A vida penetra em tudo”. Ou, no caso, a morte.