Dionísio era um deus de muitos nomes. Além da versão romana Baco (Baccus), também era chamado de Zagreu (o primeiro Dioniso), Dendrites, Bromios, Enorches, Eleutherios, entre outros.
De acordo com a semiótica, um nome é um signo cujo significante é a imagem da palavra e o significado é o conceito do objeto ao qual esta palavra remete. Ou seja, enquanto símbolo, índice ou ícone, o nome é a representação de uma coisa ou pessoa, mas não é a coisa ou pessoa. Advém daí a genialidade da obra Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo, 1929), do artista surrealista belga René Magritte, no qual se vê um cachimbo pintado sobre uma tela. O quadro nos lembra que a arte é sempre a representação e não o objeto em si. Entre o objeto e a sua representação se insere o olhar. É aí, nesta lacuna, que se estabelece a interpretação do observador, fazendo com que a “verdade” da obra se desdobre em tantas versões da imagem quanto são os olhos que a observam.
O enigmático romance Dionísio em Berlim, de Tiago Novaes, narra a história de um personagem ao qual também são atribuídos vários nomes. E sua história, por outro lado, é narrada através de cinco diferentes perspectivas: do turco Emin, da argentina Mercedes, da palestina Silena, do sudanês Kamal e da mexicana Agave — todos exilados estrangeiros que o conheceram, mas ignoram seu paradeiro.
Nesta sobreposição de vertentes e narrativas, o que menos importa é encontrar o “verdadeiro” Dionísio. Porque a “verdade”, enquanto linha de chegada, é muito menos interessante para a literatura do que a busca. E este é, definitivamente, um romance sobre a busca. Tanto a busca travada pelo próprio Dionísio como a busca dos outros por uma versão válida de Dionísio.
O fato de os narradores serem todos estrangeiros é uma pista para o entendimento do tópico central do livro: a questão da origem enquanto determinante do destino.
Dionísio é o protagonista contado por fora, pela voz de outros. Diz-se que ele chegou a Berlim por conta de uma tatuagem feita em suas costas quando ainda era criança. Nela, se vê a torre de radiodifusão da Alexander Platz, cartão-postal da capital alemã, para onde ele viaja vindo de Nova York, com o intuito de desvendar o mistério sobre sua própria origem. Sabe-se que nasceu na Índia e foi criado em um mosteiro no Butão. A certa altura descobre que seu pai não é seu verdadeiro pai. A tatuagem, assim espera, pode ajudar a revelar o segredo sobre a real paternidade, e o leva aos subterrâneos da noite de Berlim, onde é enredado em uma trama que envolve música eletrônica, tráfico de entorpecentes e um plano de sintetização de drogas que remonta aos nazistas e à Segunda Guerra Mundial.
Os cinco narradores são exemplos típicos do narrador não confiável, esta figura literária cuja credibilidade foi comprometida. Eles contam a sua versão da história de Dionísio, reeditando-a conforme sua própria percepção e desejo de composição dos fatos. Seus relatos são registrados por um receptor invisível, que nunca fala e parece estar atrás de Dionísio — provavelmente o alter ego do autor à procura de seu personagem: um homem que busca um homem que busca.
Busca pela origem
Tiago Novaes é bastante feliz na escolha do narrador não confiável como apresentador dessa história caleidoscópica, na qual a veracidade dos fatos é tão vulnerável quanto a memória dos personagens. Como é de praxe no uso desta figura narrativa, as narrações são todas em primeira pessoa e, ainda que se dirijam a um interlocutor imaginário, revelam-se verdadeiros monólogos interiores, descambando frequentemente para o fluxo de consciência. As informações são fragmentadas e se sobrepõem em lembranças de eventos reais, sonhados e inventados.
Naquele instante de devaneio, já não podia atestar se o vulto brotara de um sonho ou da lembrança. Busquei invocar a sua imagem sobre o gramado. Não havia ninguém sobre o gramado. O homem misterioso, o oriental ladino, portava este poder — de evadir-se das lembranças, de circular por elas. E quem sabe não poderia reaparecer numa outra memória onde não se apresentara de início?
Essa fragilidade da memória é o fio condutor que norteia o tema central da busca pela origem, pois são as lembranças pessoais que formam o andaime da nossa identidade. O problema é que, enquanto bússola nesta busca pelo outro, a memória é falha, pois suscetível ao permanente desejo de reeditar a própria história.
Assim, Dionísio revela-se um duplo, a projeção do eu no outro, o desdobramento do idêntico no confronto com o diverso. E quanto mais são os espelhos, maior a possibilidade de distorção da própria imagem. Neste sentido, Berlim, enquanto metrópole babélica e multicultural, barulhenta e silenciosa, enquanto espaço urbano que se faz de contrastes, revela-se o cenário perfeito para as muitas máscaras pegadas ao rosto dionisíaco. Como a cidade, Dionísio é múltiplo, mas só se desvenda para quem domina a multiplicidade, a polifonia e a sobreposição das camadas de silêncio.
A cidade era feita de espaços abertos, mas também tinham criado outros lugares inacessíveis, proibidos… Agora caminhava e percebia que girava em falso, descarrilado. O entusiasmo, aquela trilha sonora que escutara até aquele dia de repente se apagava, acabara a bateria do music player e era um susto conviver com o silêncio das coisas que não diziam nada, o silêncio dos pontos de ônibus vazios, das ruas desertas, dos bipes dos códigos de barra, dos caixas automáticos, das despensas da cozinha, o silêncio das marquises, dos monumentos, das teorias difíceis, o silêncio dos banheiros públicos e dos homens que repõem o papel toalha dos banheiros públicos, o silêncio dessas turbinas das aeronaves aposentadas, o silêncio dos adolescentes com suas vozes repetitivas, incoerentes, voltadas para si, o silêncio das batinas, o silêncio sepulcral dos gases atmosféricos, do futuro, o silêncio branco das UTIs e dos legumes congelados, e todos os silêncios que se aglutinavam…
A urbanidade, enquanto aglomerado de culturas e influências, silêncios e algaravias, funciona como um prisma que, no espelhamento com a alteridade do próximo, decompõe o reflexo daquele que (se) busca, estilhaçando a sua imagem em tantas partes quantas versões de sua história. Assim, Dionísio é o próprio esboço do urbano, ele é a anonimidade por trás de tantos nomes, semelhante ao que acontece no romance cult Clube da luta (1996), de Chuck Palahniuk, ao qual, aliás, é feita uma sutil alusão no livro, pois a escola de dança da namorada cega de Zagreu leva esse mesmo nome.
Apesar da interessante pegada filosófica e do absoluto domínio dos recursos estilísticos e da linguagem de prosa poética, enquanto romance, há de se ressaltar que o livro não se desenvolve, não ocorre praticamente nenhum conhecimento novo substancial em relação à figura de Dionísio ao longo da narrativa, não há, de fato, acréscimo nem perda de conteúdo no que já ouvimos em relação a ele no primeiro monólogo, apesar das versões de sua história serem completamente distintas. Não ocorrem twists, Dionísio permanece uma ilusão ou projeção ou duplo do respectivo narrador. Em princípio, trata-se aqui, no melhor dos casos, de um romance fragmentado, construído a partir dos preceitos de uma fuga (no sentido musical do termo, como uma fuga bachiana). As falas dos cinco personagens são uma só fala em variações, o loop polifônico de um só relato, refratado em diversos ângulos. Dionísio é, a um só tempo, construção e ruína. Como Berlim.
Neste sentido, Dionísio em Berlim é Berlim em Dionísio.