🔓 Às vezes é difícil falar a verdade

Sempre me orgulhei de ser honesta com a minha filha, desde quando ela nem sabia o que era a palavra honestidade
28/10/2020

(28/10/20)

Sempre me orgulhei de ser honesta com a minha filha, desde quando ela nem sabia o que era a palavra honestidade. Quando me separei do pai dela, Eva tinha apenas dois anos e todos diziam: que bom que ela é tão pequena, não vai sentir tanto. Claro que sentiu, e fiz questão de conversar com ela de mulher para mulherzinha, explicando com clareza tudo o que aconteceu e por que aconteceu daquela maneira.

Quando ela tinha sete anos, outro episódio difícil. Nossa cadela, Filó, na ocasião um filhote de poucos meses, morreu. Minha filha estava na casa dos avós, no Rio de Janeiro, e fiquei estupefata com a sugestão de alguns familiares: eu deveria substituir a cachorra por outra igual, da mesma raça, sem relatar a Eva o que tinha acontecido. Naquele instante percebi como nascem as mentiras familiares: de um desejo equivocado de proteger o outro. Adoções omitidas, paternidades não reveladas, bastardos relegados — tudo em nome do melhor para Fulano e Beltrano, em um delírio de onipresença do sujeito mentiroso, que não bastasse ter a pretensão de ser Deus no universo alheio, ainda o diminui, pressupondo que não tem força para lidar com a dor. Acho que já está claro que eu não iria tomar esse caminho com a Eva e, de novo, dei a real para ela.

Achei que depois desse luto, estaria pronta para encarar qualquer questão com a minha parceira de vida. Mas então veio a pergunta, num domingo à tarde, na paz da sala de estar: mãe, o que vai acontecer se o planeta esquentar? Larguei a revista que estava lendo. Olhei para minha filha, que segurava seu velho urso de pelúcia na mão. Talvez eu tenha pensado: de onde essa garota de oito anos tirou esse assunto? Dos jornais espalhados sobre a mesa de centro? Mas não era hora de pensar nisso nem de conferir, ela me fitava como me fitava o urso, os olhos secos. Eu sabia a resposta. Sabia tão bem que podia baixar um Power Point mental ali no meio da sala. Sou editora de uma plataforma sobre mudança climática, chamada Fervura. Além disso, tinha concluído, há poucos dias, a leitura de Nós somos o clima, do Jonathan Safran Foer. Os números ainda cintilavam como brasas na minha cabeça. E como Eva é tão condômina deste planeta quanto eu, me preparei para dizer de novo a verdade.

Se o planeta esquentar apenas dois graus, o que acontecerá com certeza, o nível do mar vai aumentar cinquenta centímetros. Sabe aquela cidade que visitamos uma vez, a da Estátua da Liberdade? Pois é, talvez possamos nadar de pé de pato por ela. A subida do mar vai ser tão grande que a prefeitura de Nova York prevê a construção de muralhas para segurar a água e, naquele bairro que também visitamos, o Queens, algumas casas já vêm sendo construídas em cima de plataformas. Difícil para eles e mais ainda para os países pobres, que não contam com esse Lego-Muralha. Sabe quantas pessoas vão perder as casas por causa da mudança climática no mundo todo? Pelo menos cento e quarenta milhões. Eu sei, você não faz ideia de que número seja esse. E essa onda de refugiados deve aumentar em quarenta por cento os conflitos armados, coisa que você também não compreende, mas logo vai compreender. Muitas pessoas vão morrer de doenças causadas pelo calor, como problemas respiratórios e paradas cardíacas. E se vai ficar difícil para o homem, que inventou essa bagunça toda, imagine para os animais. Mas imagine só para alguns, porque os outros nem vão mais existir. Cerca de metade da fauna será extinta, sessenta por centro das plantas e noventa e nove por cento dos corais. O desmatamento da Amazônia vai comprometer o regime de chuvas do nosso país e vamos perder uns vinte por cento das plantações. Os brasileiros vão passar mais fome. E não filha, não estamos falando de sorvete ou de cachorro-quente. Mas o pior vem agora. Por incrível que pareça, todo esse estrago foi feito por uma única geração: a minha. E agora a sua tem que resolver. E pra ontem.

Eva seguia me olhando, esperando por alguma resposta, com aquele urso que de repente já parecia tão jurássico para mim. Finalmente consegui abrir a boca e respondi o que consegui: se o planeta esquentar, algumas pessoas vão sofrer muito. Mas com a gente vai ficar tudo bem. No final, falei de novo a verdade. E só depois de falar me dei conta de que talvez essa seja a verdade mais cruel de todas.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

Rascunho