O valor da tradução na aventura literária

Na aventura literária, a tradução tem lá seu enredo garantido, sua cota de divertimento e emoção a oferecer
01/01/2004

Na aventura literária, a tradução tem lá seu enredo garantido, sua cota de divertimento e emoção a oferecer. A aventura literária — para lembrar o título de um livro de José Paulo Paes (aliás, grande e prolífico tradutor) — não prescinde de incursões em paragens povoadas por estranhamentos e conflitos. Tradução também é isto: desconfiança, suspeição, atrito, contenda.

Mas é, quando bem feita e com cuidado, também literatura. Anos atrás, quando, parece, dava-se mais atenção ao papel da tradução na literatura, publicou-se livro denso, saboroso, intitulado A tradução da grande obra literária. Escritores e tradutores discorriam sobre a tradução de peças importantes da literatura brasileira e mundial. Tomaram parte nomes como Paulo Rónai, Lêdo Ivo, Geir Campos, Robert Scott-Buccleuch (aquele que “comeu” uns quantos capítulos de Dom Casmurro na tradução para o inglês).

Naquele já distante 1980, figuras de relevo da literatura e da tradução reuniam-se — literalmente, pois o livro teve origem num ciclo de conferências — para discutir as dificuldades e dividir os segredos e truques de uma arte oculta. Parece, a propósito, que o adjetivo lhe cai muito bem: oculta. Das artes, talvez a mais oculta — sempre encoberta pela voz mais forte do original.

De tão oculta, faz-se quase transparente. Bem notou o historiador Jorge Coli, em ensaio recente, que as traduções são tantas vezes tratadas como “transparências invisíveis, e não como o resultado de um trabalho literário efetivo”. O comentário é preciso e sempre oportuno: a obra tradutória tem, em si, valor literário, pois cria nova literatura. Às vezes ótima literatura, de tão bem lapidado o texto, de tão meticuloso o trabalho de pesquisa.

Voltando à Tradução da grande obra literária (Editora Álamo, 1982), não queria deixar de citar alguma idéia inspirada do escritor, poeta e tradutor Lêdo Ivo. Num ensaio sobre suas traduções de Rimbaud, mas que também discorria sobre a tradução da poesia e da literatura de modo mais amplo, Ivo chamava a atenção para o aspecto aventuroso da empreitada tradutória: as palavras se engravidam de alternativas, a cada frase se tem bruscas bifurcações, em cada fim de parágrafo assaltam dúvidas, intimidações, perplexidades.

Traduzir é perigoso, como escrever. Na escritura, a liberdade é ampla — o que não diminui o apuro. Na tradução, toda vigilância é pouca. Sugestões chegam de todos os lados: de outros livros, outras traduções, dos dicionários, das conversas de botequim. A cada letra, espreita um risco — nunca evitável de todo. A crítica é azeda, e, de recompensa, só o silêncio.

Parte do problema é que, na tradução da literatura, usa-se a linguagem para exprimir uma linguagem que não quer se mostrar de todo. Na literatura, o não dito conta demais, e os espaços em branco são por vezes clamorosos. Helena Parente Cunha, companheira de Lêdo Ivo naquela obra de 1982, resumia dizendo que “por essência, a linguagem literária se afasta da função de comunicação”. Uma arte que parece nunca querer se revelar inteira.

Esta é uma questão essencial para a tradução, e especialmente para a tradução da obra literária: o que revelar? Difícil alcançar a proporção exata entre a sugestão — como tantas vezes se nota na literatura — e a exposição. O conflito entre o hermetismo e o devassamento vai sempre estar na linha de frente desse “árduo trabalho de traduzir”.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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