Não queria voltar ao tema, mas volto. Tradução e religião parecem dois termos imbricados de uma maneira inseparável. A tradução da religião não apenas forneceu combustível para muita fogueira, mas também suscitou muita reflexão sobre o ato mesmo de traduzir. Escolhas teológicas muitas vezes andam de mãos dadas com escolhas tradutológicas — e com escolas de tradução.
Lutero não foi apenas reformador. Foi também, notavelmente, tradutor. Suas opções teológicas nortearam sua tradução. Sua prática tradutória, em busca das fontes originais, orientou suas escolhas teológicas. Estudo de Catherine Bocquet (L’art de la traduction selon Martin Luther — ou lorsque le traducteur se fait missionnaire, Artois Presses Université, 2000) traça imagem pontual mas dinâmica do universo tradutológico do Reformador. Traça a imagem de um tradutor que, pragmático, visando à divulgação de sua interpretação da Bíblia e do cristianismo, procurava redigir um texto fluido na língua-alvo, o alemão. Traduzia primordialmente para o leitor. Em geral — sempre há as exceções — evitava a tradução literal, priorizando o “sentido” (ou sua interpretação) em detrimento da letra dura e velha — já meio carcomida pelo tempo e pelos excessos da hermenêutica — dos textos originais.
Lutero também escreveu sobre tradução, sobre sua maneira de traduzir. Não que tivesse interesse específico no terreno da tradução. Não foi um tradutólogo. Queria justificar suas escolhas, e justificar-se, perante seus leitores, seus seguidores — e mesmo perante aqueles que chamava “papistas”. Era uma maneira de explicar, por meio de reflexões sobre a tradução, as posturas teológicas que fundamentavam a criação de uma nova religião.
Lutero foi o maior dos reformadores. A Reforma foi um divisor de águas na história do cristianismo. A tradução esteve na base da Reforma. Foi um movimento de volta às origens, de busca do texto-fonte como guia, segundo uma determina interpretação. Foi um exercício de tradução, para os diversos vernáculos europeus, da Bíblia fossilizada em hebraico, aramaico e grego, e embalsamada em latim. Não que, ao tempo de Lutero, já não houvesse traduções para o alemão (e para outros vernáculos). Mas o esforço divulgador da nova tradução luterana não teve paralelo. Não sei se diria, com o tradutólogo francófono Edmond Cary, que a Reforma foi essencialmente uma querela de tradutores. Mas a tradução foi, sem dúvida, seu principal instrumento.
Lutero não foi um tradutor convencional. Não revolucionou apenas uma religião. Investigou, recriou, refundou uma língua. O alemão moderno lhe deve muito. Procurava traduzir para o alemão comum, não apenas para o letrado. Fundia a língua do povo — viva, livre, irrefreada — com o gélido alemão burocrático. Quando à língua parecia faltar instrumentos, criava novos — novas palavras, com elementos germânicos, inspiradas na velha e gasta letra bíblica original. Ou então criava novas acepções para velhas palavras. Renovava a língua, modernizando-a e preparando-a para o salto que logo ensaiaria. Traduzindo para o homem comum, dotou o alemão de instrumentos que lhe possibilitaram alçar-se à condição de grande idioma literário. Por trás de uma grande língua literária, há sempre alguns grandes tradutores-fundadores.
Lutero legou a Reforma e toda uma língua nova — parte ainda em potência, mas nova. Legou um sentido de liberdade ao traduzir. Achou liberdade num terreno às vezes pouco associado à independência de pensamento. Deixou, ainda, textos de reflexão sobre o artesanato de traduzir. Tradução como tenacidade e teimosia, como esforço e arte.