A tradução pela ótica dos clássicos franceses

Traduzir é como querer agarrar Proteu, o deus arisco dos mares, e fazê-lo falar
01/01/2005

Traduzir é como querer agarrar Proteu, o deus arisco dos mares, e fazê-lo falar. Assim é o texto que se esquiva e se oferece — sempre relutante, num jogo de mostra-esconde — aos trabalhos do tradutor. Protéico. Há que surpreendê-lo adormecido, apertá-lo com força, subjugá-lo, até que desista de suas artimanhas e se entregue à interlocução. Tarefa nada fácil. Traduzir é fazer o texto falar, arrancar profecias do guardador dos rebanhos de Netuno.

É fazer ao velho deus marinho a “velha violência”, “o esforço dos tradutores”, na voz de Victor Hugo. Como Proteu, o texto original, o texto literário, parece querer eludir, iludir, safar-se. Camaleônico, lança mão de todas as metamorfoses: árvore, bicho ou mesmo elementos da natureza. O abraço, se bem dado, acelera as mudanças. Só se entrega no fim, de volta à velha forma, o texto, agora domado por um instante. Sentidos se esclarecem e se camuflam, nas voltas do tempo, culturas e épocas.

O velho texto, Proteu, imobilizado no abraço, esgotados os ardis, se entrega a profecias e confissões. Fala o que se quer ouvir. Na obra literária, revelam-se enredos que embalam o sonho que cerca toda arte. Obra original, sem dúvida, mas vazada em outro verso. O estranhamento mútuo do choque entre as línguas detona o movimento de mudança.

Esboçar uma explicação desse processo também não é tarefa fácil. São tantas as variáveis que não há teoria que o explique a contento. Não é simples, nesse caso, fazer recortes, dividir para entender. Se o texto dribla com fintas desconcertantes, o processo da tradução também tem lá os seus segredos.

Fazer um mapa não é preciso, não é ciência exata, mas é necessário. Pelo menos um rascunho. No Brasil, ou em português, não se acham facilmente textos que dão pinceladas sobre a dimensão histórica e a trajetória da tradução e do pensar sobre tradução.

A publicação, em edição bilíngüe, do volume 2 da coleção Clássicos da teoria da tradução, pela Universidade Federal de Santa Catarina, vem trazer uma boa contribuição à ainda magra literatura sobre o tema. Traz o olhar francês sobre esse ofício tão antigo quanto esquecido. O primeiro volume reunia autores alemães, como Goethe, Friedrich Schleirmacher e Wilhelm von Humboldt. O segundo traz, além de Victor Hugo, D’Alembert, Madame de Staël e Paul Valéry, dentre outros.

Essa visão panorâmica — que traceja o trajeto do ofício — é talvez uma das coisas mais importantes que se pode fazer pelo estudo da tradução. Saber como pensadores de outros tempos enxergavam essa matéria. Ao lado de esforço recente de contar um pouco da história da tradução no Brasil, o lançamento do volume 2 dos Clássicos representa a busca de lançar luzes sobre campo ainda obscuro.

A “velha violência feita a Proteu”, exposta com menos pudor, se torna mais palatável — até compreensível. “Shakespeare resiste, é preciso cercá-lo. Shakespeare escapa, é preciso persegui-lo”, diz Victor Hugo. Nesse pega-pega, texto e tradutor, caça e caçador, se enredam na balbúrdia do esquivamento e da incompreensão. Não se distingue com clareza. Ao tato, a forma é assustadiça e fugidia. Não se ouve só som, se ouve ruído e som. Atenção e o volume exato — nem baixo demais nem alto a ponto de distorcer — ajudam na tarefa de entender e tornar entendível. Proteu, deus do mar e símbolo do inconsciente, que abençoe esse desafio.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho