Super-homem, a canção, de Gilberto Gil

A truculência do período político autoritário encontra eco na arrogância histórica dos homens
Gilberto Gil, autor de “Super-homem, a canção”
18/03/2016

Super-homem, a canção

Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter

Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver

Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser

Quem sabe
O Super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher

Era o ano de 1979, e Gilberto Gil lançava o hoje clássico Realce. Na faixa três do vinil, Super-homem, a canção estourava nas paradas musicais, alcançando, via rádio e tevê, cidades e rincões distantes. Os ventos da abertura começavam a arejar o clima, ainda que o país continuasse sob batuta militar. Nesse contexto, de crescente liberdade e constante vigilância, de certo modo é sintomático o sucesso de uma canção que, com firmeza e delicadeza, denunciava a necessidade de sofisticar as visões do “mundo masculino”, entendendo-o como constituído no diálogo com o feminino (a “porção mulher”). O poema-canção de Gil vai, metafórica e filosoficamente, bem além dessa denúncia, mas, em um mundo em que grande parte da violência — física e simbólica — contra a mulher decorre do comportamento machista, isso não é pouco.

A truculência do período político autoritário encontra eco na arrogância histórica dos homens — policiais, pais, padres, patrões, esportistas, maridos, cidadãos de toda espécie — que sempre usaram e abusaram de uma suposta “superioridade” de séculos e séculos sobre a mulher. Assim, o poema de Gil fala de um tempo, e a partir de um tempo, mas repensa todo um passado opressivo e, décadas depois de lançado o long-play, se mantém crítico e necessário diante da cena contemporânea, que insiste em perpetuar o pior da herança patriarcal. Porque, pelo que se vê às escâncaras nas relações cotidianas entre homens e mulheres, as práticas fascistas do mundo masculino continuam fundamentalmente as mesmas.

O poema de Gilberto Gil possui quatro estrofes, com várias homologias. Os primeiros versos de cada estrofe são todos dissílabos, entoados bem lentamente pelo cantor e marcam etapas de uma reflexão transformadora: UM DIA diz de um tempo e modo caduco de representar-se como masculino no mundo; QUE NADA fala de uma descoberta, difícil, de algo (no caso, a “porção mulher”) abafado no corpo do sujeito; QUEM DERA professa uma vontade, uma utopia de que “todo homem” consiga, esclarecido, vislumbrar a alteridade em si; QUEM SABE sugere uma mudança radical de rumos, em que o homem atue em nome de novas formas de ser: por causa da mulher.

Os versos intermediários de cada estrofe são quase todos alexandrinos e rimam entre si, consoantes nas estrofes 1 (bastaria/daria), 3 (dera/primavera) e 4 (glória/história). Na estrofe 2, rimam-se “resguardara” e “agora”, numa espécie de homoteleuto, ou seja, sons que rimam (ra/ra) após a tônica (da/go); a rima se reforça com a aliteração em /g/ do verbo resGuardara e do advérbio aGora, e ainda, entre estes termos, a presença de traGo; o efeito fônico se fortalece também com a rima interna de agOra e melhOr. Por sua vez, os versos finais de cada estrofe, todos hexassílabos, rimam entre si: ter/viver/ser/mulher, com o /e/ aberto de “mulher”, finalizando os três /e/ fechados anteriores. A diferença fônica de “mulher” faz ressoar outras nuances.

Toda essa estrutura rímica e rítmica age para o desdobrar da canção. Na segunda estância, o jogo entre “porção mulher” e “porção melhor” funciona de forma exemplar, indicando que a correspondência morfossonora entre os termos é também de ordem semântica: “ser um homem feminino/ não fere o meu lado masculino”, dispara Pepeu, solidário, em 1983.

Pelo que se vê às escâncaras nas relações cotidianas entre homens e mulheres, as práticas fascistas do mundo masculino continuam fundamentalmente as mesmas.

Insinuação de androginia
Na página de Gil na internet, há notas reveladoras referentes à canção. Sobre essa “porção mulher”, diz: “Muita gente confundia essa música como apologia ao homossexualismo (…). O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião — me interessava revelar esse imbricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano”. Um termo ambivalente intensifica essa nova postura (intelectual, poética, existencial) diante da diferença e da suplementaridade dos gêneros: o verbo no verso “a porção melhor que TRAGO em mim agora” tem tanto o sentido de trazer (mais óbvio) quanto de tragar (mais estranho). O sujeito exibe/traz essa porção melhor exteriormente, enquanto a vive/traga intensamente.

Theodor Adorno em 1945, em Minima moralia, registra: “O caráter feminino e o ideal da feminilidade, segundo o qual ele está modelado, são produtos da sociedade masculina. (…) Aquela que, quando sangra, se sente como uma ferida sabe mais de si do que uma mulher que se acha uma flor, porque ao seu marido assim convém”. Tendo o fragmento em vista, pensa-se melhor e mais criticamente o conteúdo da quadra final da canção. Atuando em favor, “por causa da mulher”, ainda é o homem que tomará a iniciativa de, “como um deus”, mudar o curso da história, para glória, ao que parece, da humanidade (a qual, por séculos, é regida pelo poder… do homem). Desse modo, a última estrofe põe em evidência que, mesmo reconhecendo a ilusão de acreditar que “ser homem bastaria”, o poeta ressente-se da presença masculina que se afirma sobre a fragilidade da mulher que eternamente precisa ser salva. Ao invés disso, a melhor porção mulher virá lembrar que é ferida — e não flor. Ou seja, como voz e corpo autônomos, na contramão do desejo patriarcal, dirá da diferença, do não-idêntico, do não sabido (lembrando que “quem sabe” significa “talvez”).

Gil esclarece que foi Caetano quem deu o mote para que este compusesse a canção em pauta, quando, em 1979, retornando do cinema, contou a Gil e a outros de “Super-homem, o filme”, que acabara de ver. A cena em que o herói altera “o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo para salvar a namorada” que sofrera um acidente impressionara Gil; daí, a canção e seu fecho. Anos depois, em Verdade tropical (1997), Caetano fala de questões de sexualidade e usa a expressão “Que nada”, citando tanto a canção Mas que nada (1963), do então Jorge Ben (hoje Ben Jor), quanto esta do amigo Gil: “Tendo tido uma frequência muitíssimo mais alta de práticas heterossexuais (inclusive dois casamentos vividos com sincera tendência monogâmica), poderia dizer, a esta altura da vida, que me defini como heterossexual. Mas que nada. De todo modo, não há por que obstinar-se na busca de uma nitidez na orientação sexual se ela não se apresenta como evidência espontânea”. Caetano, Gil, Pepeu e outros raros — considerando a massa machista que, rebanho, se quer sempre com a razão, porque “maioria” — são porta-vozes de “pérolas aos poucos” (título de linda canção de Wisnik). A sexualidade alheia afeta em excesso essa maioria, que quer vigiar e punir o corpo do outro.

Talvez o mais surpreendente em Super-homem, a canção seja perceber que o teor radical, dionisíaco, do que ela diz vem envolvida numa melodia sedutora, circular, calculada, apolínea. Ela diz, sem subterfúgios, que o mundo masculino ilude, que a porção mulher é melhor e constitutiva, que os valores do homem caducaram e que a glória depende de uma verdadeira transformação comportamental. Ouvimos a música, nos emocionamos, cantarolamos com o intérprete. Possivelmente, até pensemos, enquanto dura a canção, na necessidade de, homens, nos reinventarmos. Finda a música, algum grão — quem sabe — pode ter germinado em nós. Ou não. Mais provável é que os homens, conformados e satisfeitos, nem sequer imaginemos a hipótese de “voltar o tempo para salvar a namorada”. O que, no fundo, quer dizer: salvar a nós mesmos.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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