Este poema — Rondó da ronda noturna — de Ricardo Aleixo ocupa toda uma página de seu livro Trívio, publicado em 2002 em Belo Horizonte. O estranhamento é imediato: sob um fundo preto, há letras brancas, em tamanho superior ao costumeiro; as palavras se apresentam de modo fragmentado: de todos os doze versos, se destaca a letra inicial do termo, formando assim duas colunas; na segunda coluna, em oito vezes aparece o sinal “+”, que, na leitura, se traduz inicialmente em “mais”. Antes mesmo da leitura linha a linha do poema, o olho capta o conjunto, que, pulverizado horizontal e verticalmente, nos leva a intuir que algo de sinistro ocorre nessa ronda noturna.
Recompondo-se as palavras do poema, e inserindo uma pausa a cada dois sinais de “+” (como se uma estrofe fosse), teríamos: “quanto +/ pobre +/ negro/// quanto +/ negro +/ alvo/// quanto +/ alvo +/ morto/// quanto +/ morto +/ um”. A pausa da artificiosa estrofação permite vislumbrar a estratégia de composição do poema, que se faz a partir de uma irônica e trágica relação de causa e efeito, em que palavras se vinculam pelo sentido que delas se poderia extrair: pobre e negro, negro e alvo, alvo e morto, morto e um. Se entendido certo caráter cíclico (já que se trata de um rondó) que o poema parece insinuar, o termo final “um” se ligaria ao substantivo inicial “pobre”, e dessa forma o perverso destino dos sujeitos tematizados no poema — que aqui são um alvo (desde já, “mira” e “objeto”, e não “branco” e “claro”) — se repete em moto-contínuo.
Não resta dúvida de que o rondó traz à tona a questão racial. É de conhecimento de todos a gravíssima — ainda em dias contemporâneos — situação dos cidadãos de cor negra. Estatísticas e pesquisas de toda ordem comprovam, em números, o que se vê no cotidiano: preconceito, desvalorização, abandono, perseguição, falta de oportunidades pioram a vida daqueles que, negros, já foram por séculos e séculos deixados à míngua, torturados, animalizados, assassinados. Políticas de reparação jamais conseguirão repor a honra, a vida de milhões e milhões de negros escravizados e mortos ao longo da história humana. (No entanto, e por isso mesmo, tais políticas públicas devem ser mantidas e intensificadas.) A arte, a poesia podem contribuir para que se pense criticamente a questão do racismo, como faz ver este sofisticado poema. Nessa direção, a obra visual de Aleixo se alinha à frase que encerra a Teoria estética de Adorno: “que seria a arte enquanto historiografia, se ela se desembaraçasse da memória do sofrimento acumulado?”. O poeta brasileiro e o filósofo alemão, assim, convergem quanto ao compromisso ético que a arte — sem prejuízo de sua elaboração formal — pode manter com o mundo em que se constitui.
Em Trívio, outros poemas também tratam do problema racial, como o excelente Brancos, em que brancos, machos, adultos, cristãos, ricos e sãos são convidados a “que se entendam/ que se expliquem que se cuidem que se”, num fecho elíptico que mal esconde o contundente verbo que se insinua ao fim da coda. O poema reconfigura o verso “o macho adulto branco sempre no comando” de Caetano Veloso em O estrangeiro (1989), denunciando o lugar de poder e de centro que certo grupo sempre quis preservar para si, e, para tanto, relegar à subalternidade e à margem os demais (os outros, a “minoria”: mulheres, homossexuais, crianças, velhos, negros, índios, miseráveis, etc.).
Se rondó é uma variação em torno de um tema nuclear e ronda uma vigilância para conter ou prevenir perigos, então o título Rondó da ronda noturna, conjugado com os versos, sugere, em síntese, que estamos diante de um acontecimento que — tendo a noite, o noturno, o negro como pano de fundo — se repete incessantemente: o genocídio, banalizado, da população negra e pobre. O sinal “+” adquire, neste contexto, a ressonância icônica de uma cruz (o poema, ocupando todo o espaço retangular da página escura, remeteria, assim, a um túmulo). As palavras fraturadas (q/uanto, p/obre, n/egro, a/lvo, m/orto, u/m) confirmam visualmente a violência contra o corpo, ora desmembrado. Mesmo em face da triste condição de oprimido, o poeta não perde a verve da ironia e do humor, e revela, via linguagem, a diferença de ser um “alvo negro”, que pode ser morto (ou matável, para lembrar expressão de Giorgio Agamben), e um “alvo branco”, que pode ter, dada a alva cor da pele, algum privilégio ao outro negado.
O poema de Ricardo Aleixo ecoa a longa, antiga, dolorida luta dos negros em prol de uma vida digna, em que direitos e deveres sejam os mesmos para todos. O caráter utópico da luta não esmorece o ímpeto da denúncia e a vontade de transformação. Antes, une com força uma resistente tradição que congrega, entre tantos, escritores como Castro Alves, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Machado de Assis, Solano Trindade, Adão Ventura, Waldo Motta, e Maria Firmina, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Miriam Alves, Elisa Lucinda. Cada um, em seu tempo e à sua maneira, faz valer a letra em nome de uma justiça terrena, do aqui e agora. Machado, por exemplo, em Esaú e Jacó (1904), põe na voz do diplomata Aires, quando da Abolição da Escravatura, a pilhéria: “Emancipado o preto, resta emancipar o branco”.
O fundo negro numa página de poema não significa, necessariamente, que algo de fúnebre vai ser ali representado. Mas quando, sobre esse fundo, se inscrevem versos como esses de Aleixo, que recontam a triste e conhecida, velha e contemporânea história da implacável opressão contra os negros, aí somos levados a – nem que seja por um instante da leitura — rever nosso lugar de alvo-branco que aceita, sem mais, que o “pobre negro morto” seja um a menos.