Manifesto Pobrás, de Nuvem Cigana

Escrito por jovens poetas, texto é impregnado pela vontade lírica, com metáforas e alegorias, humor incessante, transgressões gramaticais
Cacaso, autor de “Não quero prosa”
01/09/2023

Nós poetas perguntamos: ser marginal é não correr atrás de padrinhos literários de grandes editores?
Ser marginal é não se sentar em fúnebres academias pra molhar o biscoitinho?
Ser marginal é não fingir de mudo surdo burro quando pisam o seu pé?
Ser marginal é tentar viver lutar e ganhar a vida com a poesia minha alegria?
Ser marginal é não jogar esse jogo, então temos a declarar: somos poetas marginais e mais, magistrais, e como tais declaramos criada a POBRÁS — órgão que lutará pelos direitos:
1. direito de ir e vir;
2. direito de assistência médica, psiquiátrica e jurídica;
3. ser reconhecido como trabalhador;
4. direito ao dinheiro;
5. livre acesso a qualquer gráfica da união;
6. livre acesso a botequins, cabarés e palácios da cidade;
7. isenção de flagrante;
8. abatimento no preço do papel;
9. aposentadoria com tempo indeterminado de serviço;
10. acesso à informação e aos meios de comunicação;
11. reconhecimento do registro da POBRÁS como documento único e infalível.
Manifesto POBRÁS – Grupo Nuvem Cigana (RJ)

Isto não é um poema. Nem de um só poeta. Nem foi publicado, originalmente, em livro.

É um manifesto, assinado pelo Grupo Nuvem Cigana e saiu no cartaz Charme da simpatia, em 1979, como informa uma nota de rodapé do volume Poesia jovem anos 70, da saudosa coleção Literatura comentada. Esse volume, de 1982, teve a organização de Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder Pereira, autores de preciosos livros sobre a Poesia marginal, com colaboração de Lula Buarque de Hollanda e consultoria de Leila Míccolis e Maria Amélia Mello. Estávamos ingressando no período de abertura lenta e gradual, quinze anos depois do golpe militar que, desde o início, censurou, prendeu e matou, tatuando em nossa história um imenso trauma coletivo.

Muitos estudiosos se dedicaram a estudar aquela época, poesia e arte. Livros, teses, artigos, eventos, projetos tentam, há décadas, entender o Brasil de 1964 a 1985 a partir da produção poética. No epicentro das investigações, a Poesia marginal — com toda a sua evidente e inevitável diversidade — oferece um farto material. Entre alguns clássicos, é bom retornar a Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1980, Heloísa), Retrato de época – poesia marginal, anos 70 (1981, Messeder), O que é poesia marginal (1981, Glauco Mattoso), Do poder ao poder (1987, Leila) e Não quero prosa (1997, Cacaso).

A prosa do Manifesto mais se quer ser lida como se verso fora. Feito por jovens poetas, nele a vontade lírica impregna o texto, com metáforas e alegorias, humor incessante, transgressões gramaticais (sobretudo à pontuação), valorização do estrato sonoro, buscando o difícil equilíbrio entre a referencialidade, típica de um manifesto tradicional, e a ambivalência, traço do poético. Ter aparecido em um cartaz de um desbundado bloco carnavalesco já diz bastante de um desejo de desprendimento, de destronamento, de subversão. Os tempos exigiam formas diferentes de engajamento, e nesse ponto reside talvez o maior charme da turma do Nuvem Cigana: um compromisso com a luta política sem perder a ternura.

Essa Declaração reúne praticamente tudo o que sofisticados ensaios teóricos especulam sobre o “movimento marginal”. O manifesto começa (“ser marginal é não correr atrás de padrinhos literários de grandes editores?”) colocando o dedo em um ponto crucial para aquela produção, a saber, o lugar de exclusão em que percebiam estar, seja porque recusavam o famigerado “pistolão” (e aqui se inclui a recusa em adotar um padrão cabralino ou concretista), seja porque parte dos marginais optou (por necessidade e contingências) pela produção caseira, via mimeógrafo, grampo, folhas soltas e afins. A própria ideia de padrinho — de protetor, mecenas — era avessa à ideia de autonomia. Ademais, estar atrelado a uma grande editora poderia supor obediência a linguagens, padrões, estilos indesejados. Pouco tempo depois, a coleção Cantadas literárias, da Brasiliense, viria abrigar parte desses poetas. Após anos e décadas, em novos contextos, o conflito com “grandes editores” esmaeceu. Os livrinhos marginais e caseiros, hoje, são raridades com bom preço no mercado, sendo disputados em leilões.

As provocações se radicalizam já com a segunda pergunta: “Ser marginal é não se sentar em fúnebres academias pra molhar o biscoitinho?”. O termo “academia” vem carregado de negatividade e ironia, efeito ampliado pelo adjetivo “fúnebre”, que remete a “morte” ou, mais ameno, a algo triste e sombrio. (Não à toa, Millôr Fernandes dizia que a ABL se compõe de 39 membros e um morto rotativo.) A imagem do célebre chá dos acadêmicos também é chacoalhada com a chacota da imagem de, em proposital baixo calão, “molhar o biscoitinho”, que, no popular, se refere ao ato sexual.

Frase a frase, o Manifesto vem enfileirando perguntas, reclamações, denúncias: “Ser marginal é não fingir de mudo surdo burro quando pisam o seu pé?”. Aqui aparece a submissão, a hipocrisia, a alienação de quem sofre uma violência mas, por temor, dissimula. (Emblemática é a cena, em Vidas secas, do soldado amarelo pisando o pé de Fabiano, acuado. Depois, contudo, vem a vingança.) Após as questões iniciais, o Grupo assume: “somos poetas marginais” e a linguagem poética ganha a cena com a sequência vertiginosa, inusitada e hilária de “marginais, mais, magistrais, tais, criada, Pobrás”.

Cada um dos onze direitos diz de um Estado opressor e de um estado precário e redimensiona um desejo maior, que é o de “tentar viver lutar e ganhar a vida com a poesia minha alegria”. Verso a verso, se listam as reivindicações:

1. direito de ir e vir: evidente alusão à liberdade em sentido máximo, para os artistas e todos os demais cidadãos, direito golpeado pelo autoritarismo militarizado;

2. direito de assistência médica, psiquiátrica e jurídica: incontáveis foram os casos de depressão, loucura, suicídio por conta dos anos de chumbo, afora as milhares de prisão;

3. ser reconhecido como trabalhador: o senso comum considera a poesia como uma espécie de enfeite que embeleza a rotina, quando não, sem mediações, entende poetas e artistas como vagabundos sem profissão;

4. direito ao dinheiro: arte, literatura e poesia em raro constituem fontes de renda suficiente para a sobrevivência de poetas pobres que pertencem à Pobrás (paródia da sempre rica Petrobrás — à época ainda uma oxítona com acento);

5. livre acesso a qualquer gráfica da união: colocados à margem do interesse de editoras privadas, os poetas se reinventavam a cada livro, para lançarem ao mundo suas “impressões de viagem”;

6. livre acesso a botequins, cabarés e palácios da cidade: o espírito dionisíaco e macunaímico da contracultura deseja flanar, experimentar, abrir as portas da percepção;

7. isenção de flagrante: em clima de sexo, drogas e rock’n’roll, os jovens — estereotipados como hippies e cabeludos à maneira de Hair ؙ eram alvos constantes de blitze em busca de drogas;

8. abatimento no preço do papel: embora a maconha, o ácido e o álcool fossem os psicotrópicos preferidos, o consumo de cocaína era relevante — assim, o papel pode ser o do livro, o que enrola o baseado e/ou mesmo o papelote;

9. aposentadoria com tempo indeterminado de serviço: o poeta não tem no horizonte permanecer décadas trabalhando para um sistema explorador, daí o desejo, decerto utópico, de escapar dos tentáculos capitalistas;

10. acesso à informação e aos meios de comunicação: a censura sobretudo de meios massivos (TV, jornal, cinema, rádio) afetou brutalmente a sociedade, retirando dela a possibilidade de se informar das mazelas que então aconteciam;

11. reconhecimento do registro da POBRÁS como documento único e infalível: os jovens militantes finalizam o Manifesto, denunciando a prática do estelionato e, por extensão, da tortura, que produzia “documentos” de confissão à base de práticas absolutamente desumanas.

Muitos grupos marcaram presença naqueles negros verdes anos, com nomes que se autoexplicam, entre os quais: Frenesi, Gandaia, Nuvem cigana, Vida de artista. No caso do grupo que assina o Manifesto Pobrás, há uma publicação de fato valiosa, de 2007, organizada por Sergio Cohn: Nuvem cigana – Poesia & delírio no Rio nos anos 70, com rica iconografia, antologia de poemas, depoimentos e minibiografias de Bernardo Vilhena, Cafi, Chacal, Charles Peixoto, Claudio Lobato, Dionisio, Lucia Lobo, Guilherme Mandaro, Paulinho Menor, Pedro Cascardo, Peninha, Ronaldo Santos e Ronaldo Bastos (este, compôs com Lô Borges a canção Nuvem cigana).

Na vasta fortuna crítica em torno da Poesia marginal, vale destacar estudos mais específicos sobre o Nuvem Cigana, o que inclui falar das duas edições do Almanaque Biotônico Vitalidade (1976 e 1977) e das artimanhas: de Clarissa Rodrigues Freitas, Um circuito para a possibilidade: as revistas de poesia na década de 70; de Fernanda Teixeira de Medeiros, Artimanhas e poesia: o alegre saber da Nuvem Cigana; de Renan Nuernberger, Inquietudo — uma poética possível no Brasil dos anos 1970; de Renata Gonçalves Gomes, Almanaque Biotônico Vitalidade e as artimanhas: a contracultura engarrafada no Brasil.

O Manifesto Pobrás, manifesto de poetas brasileiros em 1979, era uma blague e uma jogada contra a ditadura militar. A forma de manifesto não impede que seja lido como uma forma de poema que mistura humor ácido e crítica política. No arquifamoso O direito à literatura (1988), Antonio Candido define humanização a partir de traços como “o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”. Cada um a seu modo, os poetas marginais procuraram saber, sentir, entender, emocionar, sorrir, tendo ao entorno um Brasil do sufoco. Procuraram seus direitos, inclusive à literatura que faziam. Parece, porém, que (e esse Manifesto diz isso), para sorrir com eles, só se você deixar o coração bater sem medo.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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