Rumo ao mínimo (1)

Como seria se tivéssemos o mundo todo somente para nós, sem qualquer preocupação com os demais?
José Saramago, autor de “As intermitências da morte”
01/12/2011

O que aconteceria se a morte suspendesse suas atividades e as pessoas parassem de morrer? Essa é a premissa de um divertido romance de José Saramago, As intermitências da morte, de 2005. Romance que começa com a oração: “No dia seguinte ninguém morreu”. E nas próximas duzentas páginas, depois da breve e natural euforia, toda a população começa a perceber o horror que é a imortalidade. Porque não morrer não significa necessariamente juventude eterna. As pessoas continuam envelhecendo, agora indefinidamente. A porta de entrada permanece aberta, porém a de saída foi fechada. Os bebês continuam nascendo, os idosos avançam na decrepitude e os hospitais ficam lotados de pacientes agonizantes. Se a partir de agora a vida será permanente, as dores do corpo também serão eternas. Poderia existir um cenário mais infernal do que esse? Suspeito que sim. Desconfio que o seu oposto, o desaparecimento de noventa e nove vírgula nove por cento da população mundial, seria um inferno análogo. Mas é verdade que se você for parecido comigo — um sociofóbico incurável —, das duas possibilidades de inferno, a segunda sempre parecerá mais atraente.

O título do romance no qual estou trabalhando já diz muito: Sozinho no deserto extremo. Nele um publicitário cinqüentão e bem-sucedido, chamado Davi, acorda certo domingo e percebe que está sozinho em casa. A mulher e os filhos pequenos não estão, a quietude é incomum. Davi telefona para a mulher, mas a ligação cai na caixa-postal. Preocupado, telefona para outros números, e nada, ninguém atende. Em poucos minutos, olhando pela janela e navegando na internet, ele percebe que está sozinho no mundo. Pânico. Como manter a sanidade mental e até mesmo a própria noção de individualidade num mundo despovoado, sem ninguém em quem se espelhar? Mais complicado ainda: como sobreviver sem os serviços básicos: de alimentação, transporte e saúde? Até esse dia, as pessoas das grandes cidades — incluindo Davi — só conheciam a solidão metafórica: sentir-se sozinho na multidão. O que Davi agora tem de enfrentar é algo bastante diferente: a solidão concreta. O romance narra em detalhes esse estranho e difícil enfrentamento.

Sozinho no deserto extremo pertence a uma fértil tradição literária cuja origem desconhecida deve estar bem próxima do Livro do apocalipse, atribuído ao apóstolo João, escrito em algum momento da segunda metade do primeiro século depois de Cristo. Para os dicionários contemporâneos, apocalipse é qualquer dos antigos escritos judaicos ou cristãos que contém revelações, em particular sobre o fim do mundo, apresentadas quase sempre sob a forma de visões (Houaiss). É verdade que a palavra grega da qual chegou a nós o substantivo apocalipse não significa exatamente fim do mundo, como o senso comum acredita, mas revelação. O mais sensato seria traduzir o título original do supremo vaticínio delirante de São João para O livro das revelações ou O livro das profecias. Um apocalipse, na terminologia do judaísmo e do cristianismo, é a revelação divina de fatos que até então permaneciam secretos, a um profeta escolhido por Deus (Wikipédia). Delicadas questões etimológicas à parte, o mais importante é que estamos falando de uma literatura rica em imagens líricas e místicas, que anuncia desastres descomunais.

Como seria a vida sem os outros? Mais sossegada? Mais feliz? O filósofo Jean-Paul Sartre certa vez afirmou que “o inferno são os outros”, frase divertida, pois verdadeira, que vem sendo repetida à exaustão nas situações mais diferentes e infernais. Os desejos e os planos de cada um sempre esbarram nos desejos e nos planos das outras pessoas. O mundo não é inteiramente meu porque tenho que dividi-lo com os outros e essa divisão é sempre injusta: uns têm demais, a maioria não tem quase nada. Por mais que eu me esforce, não consigo transformar o mundo totalmente a meu favor, afinal todas as pessoas estão se esforçando pra transformar o mundo a seu favor, e os bilhões de projetos de transformação do mundo acabam esbarrando uns nos outros. Um inferno.

Apesar disso, posso dizer que minha infância foi afortunada. Olhando pra trás, vejo que de meu nascimento até os onze, doze anos, tudo correu pacificamente. Nada de acidentes ou doenças graves, nada de trabalho escravo, nada de bullying na escola, nenhuma investida dos pedófilos. Apenas tevê, quadrinhos e álbuns de figurinhas. Tudo tranqüilo e agradável. Os problemas começaram pra valer na puberdade, com o primeiro contato real com a sociedade dos adultos. Essa foi uma das experiências mais desagradáveis de minha vida.

Foi no início da adolescência que eu comecei a perceber que a vida social adulta exige variadas doses de simulação e dissimulação. São as tais máscaras sociais, os tais freios culturais que permitem que a civilização continue existindo. Confesso que essa constatação foi um grande choque. Até então eu acreditava que as pessoas tinham uma essência, um eu verdadeiro que precisava ser descoberto e cultivado. Porém logo vi que não existe essência alguma. Somos um conjunto de máscaras formatadas por leis e regras, configuradas pelos nossos direitos e deveres. A sociedade é um imenso palco onde todas as pessoas desempenham diversos papéis ao longo da vida. O papel muda conforme mudam o número de interlocutores e a natureza da interlocução: nos comportamos de maneira diferente em casa, no clube, no escritório ou num tribunal.

Visto que a maioria dos papéis e das máscaras é francamente antipática, quando não egoísta e grosseira, durante toda a minha juventude eu tive um devaneio recorrente. Queria muito ficar sozinho e descansar do teatro social. De tempos em tempos, nas horas de maior aborrecimento, eu ficava imaginando como o mundo seria ótimo se todos desaparecessem. Um mundo subitamente sem mais ninguém, só meu. Muito diferente do cenário imaginado por Saramago. Isso não seria mesmo maravilhoso?

Mas esse desejo impossível não surgiu do nada. Ele começou a fazer cócega em meu córtex cerebral depois que eu li um conto de Ray Bradbury, intitulado As cidades silenciosas, publicado originalmente em 1949 e mais tarde incluído na clássica coletânea As crônicas marcianas. Nessa narrativa leve e bem-humorada, todas as pessoas que viviam em Marte voltaram para a Terra, onde estava ocorrendo uma guerra devastadora. Voltaram para se reunir aos entes queridos. Todas as pessoas menos uma. Um minerador solteiro e sem amigos, que vivia nas montanhas, não ficou sabendo da debandada e foi deixado pra trás. Agora ele perambula pelas cidades fantasmas, divertindo-se nas lojas, nos cinemas e nos restaurantes abandonados, dormindo cada dia numa casa diferente, vivendo despreocupadamente.

A idéia logo me pegou de jeito. Que delícia, ter o mundo todo à minha disposição, não precisar estudar nem trabalhar, não precisar ser gentil e educado com as pessoas gentis e educadas, nem hostil e agressivo com as pessoas hostis e agressivas. Que maravilha, entrar numa loja — em qualquer loja — e levar o que quiser, poder vestir qualquer roupa sem me preocupar com a opinião alheia. Não ter que votar, acordar cedo, pagar impostos ou fugir de psicopatas. O conto tem certa inocência juvenil, por isso é tão bom. O protagonista não está preocupado com a falta de um médico, em caso de um acidente ou de uma doença grave. Ou com a falta de energia elétrica, quando todas as usinas pararem de funcionar.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho