Toda (boa) sedução exige apuro técnico

“Nos tempos confusos em que vivemos, as questões técnicas, pelo menos no Brasil, tendem a desaparecer
31/08/2015

“Nos tempos confusos em que vivemos, as questões técnicas, pelo menos no Brasil, tendem a desaparecer.” A advertência, em tom de desabafo e desolação, é de Graciliano Ramos em artigo sobre a escritora Diná Silveira de Queiroz, lamentando que os romances no Brasil sejam tão descuidados, principalmente na linguagem e na estrutura. Notável defensor das técnicas para a construção artesanal da obra de arte de ficção, ele sempre analisou os livros dos contemporâneos, demonstrando conhecimento dos elementos internos da narrativa. O artigo pode ser encontrado nas páginas 162 e 163 do livro Linhas tortas (Record), e compõe a segunda parte do volume. Ali, o autor de Angústia lamenta, justamente, a ausência das técnicas e faz muitas análises curiosas.

Começa destacando a questão da linguagem, reconhecida hoje como a única técnica de destaque na narrativa brasileira. Este começo é fulminante: “O romance de estreia da senhora Diná Silveira de Queiroz merece um ataque. Primeiramente, a jovem paulista não escreve bem: ‘Letícia olhou para a fila de pereiras, para a estrada que levava para longe, para lugares escondidos para sempre’”.

E continua: “Eu não devia falar em semelhantes coisas, aludir às receitas fáceis da cozinha literária, mostrar ao público a inadvertência de alguém que, no preparo de duas linhas, meteu a mão na lata das preposições e encaroçou um período com repetições desnecessárias”. E reforça com a frase já clássica: “Isto é um simples reparo, feito apenas porque as questões de técnica, nos tempos confusos em que nos encontramos, pelo menos no Brasil, tendem a desaparecer”.

Em outro artigo, desta vez sobre o livro Porão, de Newton Freitas, ele mostra como, tecnicamente, o escritor deve montar o personagem. O que diz ele, do alto de sua autoridade de autor consagrado e de crítico emérito, mestre de todos nós em qualquer circunstância? “O autor nos mostra a parte externa dos indivíduos. As suas personagens andam bem, falam, mexem-se. Notamos os seus movimentos e vemos onde elas pisam, mas não percebemos o interior delas. Estão atordoadas, evidentemente, não podem pensar direito, mas teria sido bom que os acontecimentos se apresentassem refletidos naqueles espíritos torturados. Seria preferível que, em vez de vermos um soldado empurrando brutalmente os presos por uma escada com o cano duma pistola, sentíssemos as reações que o soldado, a pistola e a escada provocaram na mente dos prisioneiros.” Isto é técnica absoluta, uma verdadeira oficina literária que explica como um personagem deve ser conduzido pelo autor, através do narrador, para que o leitor perceba a grandeza da cena. Portanto, uma aula de cena e de personagem, algo que Graciliano realizava muito bem, com a maestria de um estudioso que rejeitou um livro de Guimarães Rosa e que, mais tarde, ensinou-o a aperfeiçoar Sagarana. Sem técnica, e isto é definitivo, não se escreve uma grande obra. Com a vantagem de que estou aqui falando de dois gênios.

Não adianta falar apenas em inspiração, intuição e estranhamento. É decisivo que o autor conheça e realize as técnicas que o levam a seduzir o leitor.

Mas como é possível realizar esta lição de Graciliano? Veremos em Vidas secas, por exemplo. Na abertura desse romance, Graciliano usa a técnica do olhar do personagem na posição de narrador — ainda na primeira página identificamos este narrador, com absoluta clareza. Está escrito assim: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes”.

Parece, em princípio, apenas uma narrativa exterior, com cenário muito claro, mas está apresentada aí a agonia do personagem — narrativa interior, para ressaltar a exigência de Graciliano com relação à montagem do personagem. Onde estaria a agonia do personagem? Exatamente na humanização do verbo alargar. Cena cinematográfica: planície vermelha com manchas verdes e um verbo enigmático porque o olhar do personagem é que sente os juazeiros alargando as manchas verdes. Como as árvores não têm sentimento, o personagem passa a agonia — fome e cansaço —, num desmaio que acontecerá mais tarde. Esta frase pertence, claramente, ao menino mais velho que desmaia e é fustigado por Fabiano, com a bainha da faca para que acorde e se levante.

Vejamos como isso fica bem claro, logo diante. Na narrativa do menino:

“Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se.” Genial. Os verbos fazem aflorar o sentimento do personagem.

Em seguida: “O menino mais velho pôs a chorar, sentou-se no chão”. E adiante: “Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos”.

A grandeza do autor está no fato de que ele não diz, mas mostra. O fundamental disso tudo é que o autor consciente de sua missão, não só aconselha como realiza. O domínio da técnica, que o Brasil abandonou para contar historinhas de terno e gravata, faz a grande literatura ou apenas a literatura, como nos ensinaram Machado, Guimarães, Clarice e, é claro, Graciliano.

Fique em paz, mestre Graça. Há ainda quem pense em técnicas neste Brasil confuso.

Nota
O texto Toda (boa) sedução exige apuro técnico foi publicado originalmente no suplemento Pernambuco.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho