1.
O cânone é um conceito que tem seu quê de abstração e — aqui as coisas complicam — de subjetividade. Há cânones que abrangem larga dimensão geográfica e cultural, como o cânone do Ocidente e outros, adstritos a um âmbito peculiar, como o cânone da literatura gaúcha e, ainda, de modo pouco ortodoxo, o “cânone pessoal”, assentado sobre nossos gostos literários. Nesta coluna adoto um misto dessas possibilidades, mas que procura levar em conta a permanência da obra dentro do espírito de seu tempo, o que não quer dizer que teve fama, nem entre seus contemporâneos nem entre os pósteros.
2.
Quando penso em A sibila (1954), romance da portuguesa Augustina Bessa-Luís, penso numa obra grandiosa, que impressionou seus pares e mesmo o público, em que pesem a trama arrevesada e a multiplicidade de personagens nominadas (até grandes ficcionistas incorrem nesse erro), mas que se expressa numa linguagem soberba, capaz de siderar a quem dela se aproxime. A combinação entre a linguagem e a complexidade da história resultou num corpus único, de plena identificação no conjunto da literatura lusa da primeira metade do século anterior — então pertence ao cânone do período, mas que, e isso é irrelevante, pertence ao “meu” cânone, e isso desde que me conheço como leitor engajado em aprender os meandros da criação literária.
3.
O ambiente é rural, típico para escrever histórias que atravessam gerações familiares. Eu uso o adjetivo “rural” por falta de outro. Não se está a falar de lavradores que vivem da mão para a boca, mas de uma classe que, não nobre, podia ter seus solares, seus hábitos refinados e se considerava de uma espécie nobilitada pela permanência plurissecular no mesmo solo. Ou, como diz uma personagem, constituía uma nobreza ab imo, quer dizer, consolidada pela tradição e pelo respeito que as outras famílias lhe deferiram desde sempre. Isso não a impedia de ter de trabalhar nas coisas mais comezinhas, em especial quando se precipitavam na falência.
4.
Tal é a família da sibila, ou melhor, da menina Joaquina Augusta, Quina, que só depois adquiriu os dotes de personalidade que a assemelharam às mulheres profetisas e misteriosas da antiguidade, o que veremos no parágrafo 8. Há uma categoria de romances — soa estranho criar categorias ao gosto escolar, pois nada acrescentam, ontologicamente, ao ser que se estuda — e uma dessas categorias fala em “romances de personagem” (como se todos não o fossem). Mas, para argumentar, aceitemos que Quina é, não apenas, a personagem central da obra literária (sua vida é acompanhada do início ao fim), mas se erige em personagem central de nossa existência de leitores enquanto o somos; ela não apenas está no título, mas se constitui em eixo dinâmico da andadura de todo o arcabouço temático. A raiz de sua questão essencial, nunca a vi tão poderosa. Pensemos nela, pois. (Isso implica não enveredar pela óbvia, rica e abundante crítica feminista a essa obra).
5.
Quina vem de um meio complicado. Sua família praticava crueldades sem fim e, nisso, Quina não destoava. Mas seria uma atitude simplória dizer que, redutoramente, ela era má; longe disso: era astuciosa, inteligente, perspicaz, manipuladora, compreensiva, doce, malvada. Dado esse acúmulo de qualidades, impõe-se por ser singular por causa da reunião de todas elas; nós nos reconhecemos ante essa singularidade, pois nos consideramos — e somos — singulares na soma dos elementos de nossa multiplicidade interior.
6.
A história não é linear, ou melhor, apresenta-se em fatias de vida (para usarmos a expressão de Jean Jullien), sendo que a própria narrativa nos diz quando e onde estamos, num arco de tempo que abrange um século, dos meados do século 19 aos meados do século 20. A ação central se situa na casa da Vessada, que se inspira numa casa concreta ao norte de Portugal, num lugar ainda hoje de difícil acesso. A conjunção desse tempo enorme com o espaço, que estabelece uma dialética entre o aprisionamento das paredes da casa e o livre espaço interior, é onde Quina reina, impera e influencia as pessoas à sua volta, desde os familiares íntimos ou nem tanto, aos vizinhos próximos e distantes.
7.
Ainda criança mostrava-se dona de sua vida. Ninguém a vestia.
Tinha-se feito bela, com essa beleza que resulta mais duma aliança perfeita com o que é a moda, inesperada, inesperado, atual, do que de verdadeiros encantos físicos. Tinha o ar duma adolescente de Proust, com seus vestidos de popeline cor-de-rosa, túnica panier listrada de branco, e os pequenos chapéus de amazonas onde esvoaçavam véus que se confundiam no ar cinzento.
8.
Ao emergir de uma doença que a apanhou muito jovem, Quina passou a ser reconhecida por seus dons divinatórios. Mas atenção: tratava-se de uma especial e oportuna habilidade para entender os traços psicológicos das pessoas e, a partir daí, fazer projeções, virtuosismo que ela cultivou. Ao ser conhecida como sibila, não chegava a desmentir, usufruindo essa glória — embora falasse mal das crenças populares pré-iluministas. Equilibrava-se, entre uma coisa e outra.
9.
Sua história vital vai desde a pobreza a que seu pai reduziu sua grei por suas aventuras amorosas, à condição de matriarca — solteira — de toda aquela gente, multiplicando suas propriedades e exercendo um poder a que não faltavam os predicados típicos de qualquer autoridade: as artimanhas, os subterfúgios, a dureza, a que a auxiliaram a perspicácia congênita. Passou a frequentar epígonos da “verdadeira” nobreza. Enfim, não apenas reergueu a casa da Vessada como instalou-a numa eminência jamais pensada por seus ancestrais.
10.
Ao chegar quase nos sessenta anos, “sabia fruir o prazer da lisonja, sem lhe ceder os seus interesses; sabia ser cauta, sem deixar de ser audaciosa. Sabia ser generosa sem prejuízo seu e sem estabelecer entre ela e o desafortunado ou vencido essa espécie de ralações odiosas, comuns no mundo dos que mutuamente se espoliam e se degradam. Estava perfeita no seu cargo de sibila, pois conhecia a alma humana de dentro para fora, sem chegar a compreendê-la”. Poder-se-ia afirmar: a seu modo, venceu a vida.
11.
Como dito, focamo-nos na personagem central; todos os aspectos sociológicos, históricos, antropológicos, de crítica de costumes etc., serão descobertas preciosas reservadas a quem ler A sibila, que vem incorporar-se à nossa mochila canônica com todas as honras de obra maior.