O Rei pode chegar: os fantasmas da história cultural

A poltrona vazia, protegida por uma cerimoniosa cortina de veludo ou renda, ressurge como uma metáfora poderosa
Ilustração: Fp Rodrigues
26/11/2015

A María Luisa Armendáriz

Mais um passo
Na coluna deste mês, retomo a reflexão sobre as culturas não hegemônicas — como você sabe, as culturas shakespearianas — por meio do exame de determinado aspecto de quatro exposições recentes.

Melhor: principio tratando somente de duas mostras; no próximo mês, discutirei as duas restantes.

Não chega a ser uma surpresa que as artes plásticas, em geral, e a pintura, em particular, desempenhem um papel central na reflexão que articulo. Ora, mesmo depois do advento do Romantismo, com a consequente inflação das noções de gênio e de originalidade, o método dominante nas escolas de belas artes seguiu privilegiando a aprendizagem de técnicas e de temas através da imitatio de obras-primas da tradição.

Atenção, muita atenção: nesse contexto, imitatio pouco tem a ver com o sentido usual. Pelo contrário, aqui, imitar implica um ato particular de apropriação técnica do modelo adotado como autoridade em determinado gênero. Vale dizer, copiar, por exemplo, uma tela de Tiziano, exigia que o aprendiz se esforçasse por obter uma paleta de cores a mais próxima possível do universo cromático do mestre da escola veneziana; tarefa, aliás, nada óbvia: até hoje não se conseguiu reproduzir com exatidão o azul das telas de Tiziano. De igual modo, o aprendiz devia experimentar inúmeras vezes até apreender sua pincelada característica, consagradora da centralidade do colorido em detrimento da ênfase no desenho, traço definidor de Rafaello e da escola romana. Ao fim e ao cabo, e para recordar a definição de Heinrich Wölfflin, Tiziano foi um dos inventores do “estilo pictórico”, em oposição ao “estilo linear”, aprimorado por Rafaello.

(Você tem razão: os arqueólogos recorrem a procedimento aparentado ao mimetizar as técnicas empregadas na fabricação de instrumentos pré-históricos.)

Imitar, portanto, constituía passo indispensável na conquista da técnica em qualquer ofício; por isso, não há paradoxo algum em afirmar que, somente copiando, um artista pode, talvez, encontrar a própria voz.

(E ainda há os que afirmam que, no universo da estética, a imitatio conduziu à domesticação da arte. Equívoco por certo tonto, mas previsível se alguém escreve sobre pintura sem nunca frequentar museus ou estudar exposições.)

O pacto colonial impunha uma série de regras unidirecionais, assim como engendrava limites rígidos, cuja consequência imediata era a redução considerável de capacidade de ação própria no vasto território colonial.

Yo, el Rey
Começo por uma ambiciosa reconstrução das representações simbólicas da monarquia espanhola no período colonial. Penso em La monarquía hispánica en el arte; exposição realizada no Museo Nacional de Arte, na Cidade do México.

Em alguma medida, a leitura que proponho afasta-se estrategicamente do motivo que principia a tornar-se dominante num conjunto de notáveis mostras montadas na última década; quase todas dedicadas ao mapeamento da iconografia recorrente e dos procedimentos comuns no espaço colonial, e isso ao longo de três ou quatro séculos. No entanto, tal motivo constrange a associação inovadora de obras do conjunto do universo hispano-americano à reiteração anacrônica tanto do ideal de autonomia política, quanto do desejo de originalidade estética.

De fato, a apresentação do catálogo esclarece o que tenciono evitar; nela se explicita o compromisso com a singularidade local; aspecto que não deixa de evocar o nacionalismo oitocentista. Tudo se passa como se a complexidade das culturas shakespearianas pudesse ser resolvida num simples gesto:

(…) liberarnos de una lectura, ya muy manida, en la que nuestros tres siglos de como Virreinato no son más que oscuridad y sometimiento.

Muy lejos de esto, con “La Monarquía Hispánica en el arte” el Museo Nacional de Arte busca mostrar infinitas posibilidades que durante muchos años hemos soslayado: de interpretar el reino de Nueva España como un foco de enormes contribuciones económicas, artísticas y simbólicas a la cultura de la Monarquía; de conocer que también los súbditos de este lado del Atlántico desarrollaron una serie de manifestaciones que les hacían sentirse partícipes de un conjunto de reinos con fueros y características propias.[1]

Não devo me precipitar.

Sem dúvida, é muito bem-vindo o cuidado com a descrição do dinamismo interno das colônias ibéricas. O pacto colonial impunha uma série de regras unidirecionais, assim como engendrava limites rígidos, cuja consequência imediata era a redução considerável de capacidade de ação própria no vasto território colonial. Contudo, essa mesma condição, qual seja, a vastidão dos domínios ibéricos e a distância física em relação às metrópoles, criava zonas de sombra, nas quais a palavra do Rei demorava muito a chegar.

Portanto, de um ponto de vista estritamente histórico, é muito importante resgatar que os súditos das coroas ibéricas (ampliemos o escopo da exposição) desenvolveram, sim, una serie de manifestaciones que les hacían sentirse partícipes de un conjunto de reinos con fueros y características propias.

Ao mesmo tempo, e, agora, de um ponto de vista teórico, a contribuição de Fernando Ortiz, em seu clássico Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), esclarece que, nas relações de contato cultural, a condição não hegemônica desenvolve um princípio estratégico na adoção dos valores que podem ter sido, num primeiro momento, impostos, mas que, num segundo momento, devem ser transformados, segundo os contornos de seu novo lugar de assimilação — trata-se da transculturación.

Vamos lá: reconheça-se: Rafael Tovar y de Teresa tem alguma razão, porém, ele reduz sua nota crítica à projeção anacrônica da ideia de nacionalidade; princípio que naturalmente não poderia ter movido os esforços hispano-americanos. Ora, superando esse óbice, torna-se possível identificar numa imagem-chave, inesperada síntese da mostra, um impasse decisivo, ainda hoje presente sobretudo na vida artística e intelectual latino-americana.

Eis a imagem, localizada no princípio da exposição: uma poltrona, luxuosamente adornada, como se fosse um trono vacante, ladeada por uma cortina de veludo ou de renda, e encimada por um retrato do monarca espanhol. A imagem compõe um dossel imponente e podia ser encontrada na casa das famílias mais abastadas da colônia; afinal, pelo menos teoricamente, o Rei sempre poderia dar o ar de sua graça, e, nesse caso, era preciso nunca estar despreparado.

Portanto: todos à espera da autoridade máxima; por assim dizer, o Inspetor Geral da miríade de inspetores gerais que infestavam as colônias.

(Esta imagem foi sintomaticamente suprimida do catálogo. John Cage, ensaísta, nada acrescentaria.)

Entre mundos
Permaneço em território hispânico — por enquanto.

Trato da exibição Miguel Ángel Buonarroti Un artista entre dos mundos, organizada no Museo del Palacio de Bellas Artes, na Cidade do México. Seu tema é fascinante: pode-se comprovar a influência de Michelangelo na América Hispânica no século 16? Em caso positivo, como a notícia de suas obras teria atravessado o Atlântico? Ainda mais: formas de emulação de seu trabalho podem ser descobertas no universo colonial? Em caso positivo, desde quando?

Como se percebe, questões que levam longe.

Passo a passo.

Um militar espanhol, Bernal Díaz del Castillo, na sua crônica dos fatos que levaram à derrota do Império Azteca, Historia verdadera de la conquista de Nueva España, publicada postumamente em 1632, mencionava o nome do artista italiano numa conjunção propriamente clássica: admiração cristalina e, ao mesmo tempo, afirmação da aemulatio de sua obra num novo contexto.

Você me dirá se o entusiasmo me cega ou se o que proponho é válido:

(…) A mi juicio, aquel tan famoso pintor en la Antigüedad, Apeles, y los de nuestro tiempo, Berruguete y Micael Angel, no harán con sus pinceles las obras que tres indios hacen aquí en la escuela de Fray Pedro de Gante.[2]

Referência premonitória, uma vez que a exposição se encarregou de identificar momentos claros de aemulatio da obra de Michelangelo no contexto da América Hispânica. Os argumentos são convincentes:

(…) En algún momento del siglo XVII, un desconocido artífice de la villa Carrión ejecutó una portada en estuco para la sacristía de la capilla de la Tercera Orden del convento franciscano de la vieja villa de Carrión (Atlixco, Puebla). Hasta aquí todo normal, la sorpresa llega cuando reparamos en que esa portada es una copia fiel de la Porta Pia de Roma construida por Miguel Ángel. No conocemos ni el grabado utilizado para esa copia (los de Faletti serían candidatos viables por su fecha) ni el medio por el cual ese grabado llegó a estar en poder de nuestro anónimo arquitecto, pero evidentemente eso no minimiza la importancia de esa obra “miguelangelesca” en el actual estado de Puebla. (40)

Há outros exemplos igualmente persuasivos; este, porém, reúne uma série de elementos perturbadores.

Vamos lá.

Em primeiro lugar, é preciso assinalar a rapidez da apropriação do modelo europeu pelos súbditos de este lado del Atlántico. Fenômeno similar ocorreu com a difusão do Don Quijote, mas reservo esse tema para futuro artigo.

No entanto, como explicar essa celeridade se os indios (…) aquí en la escuela de Fray Pedro de Gante certamente nunca estiveram diante de uma única obra de Michelangelo?

A questão ameaça tornar-se decisiva se considerarmos a disseminação da auctoritas do artista italiano:

(…) La influencia de Miguel Ángel se hizo patente no solo en ese periodo moderno temprano del siglo XVI y XVII, sino que, por medio de diferentes mecanismos, tuvo un papel fundamental en la configuración del modelo visual emanado de la Academia de San Carlos a finales del siglo XVIII y principios del XIX. (…)

En un ejercicio de persistencia, Buonarroti aparecerá incluso como modelo fundamental en el naciente muralismo mexicano. (40)

Vale dizer, o estudo da primeira recepção de Michelangelo na América Hispânica possui o potencial de estimular uma inovadora cartografia de procedimentos artísticos definidores de uma circunstância específica, assim como a capacidade de propiciar um entendimento inédito da estratégia intelectual e estética que propus denominar poética da emulação.

Retorno à pergunta-chave: como a obra de Michelangelo tornou-se conhecida e logo dominante no território colonial?

De um lado, através da difusão de gravuras, desenhos e cópias — prática dominante à época. De outro, a partir tanto de descrições escritas de seu trabalho, quanto da referência constante a seu nome em biografias de artistas e tratados acerca das artes da pintura, escultura e arquitetura.

Isso mesmo: você não apenas me acompanha; sobretudo, você me antecipa: ando em círculos, com a esperança de dar um pequeno passo adiante. Retorno à constelação vislumbrada no artigo do mês de setembro: arte sem aura, desde seus primórdios desauratizada: eis a marca-d’água do fenômeno estético no âmbito das culturas shakespearianas.

(A poética da emulação é uma forma de enfrentar os impasses oriundos da centralidade da cópia como correlato objetivo da impossível origem.)

Porém, todo cuidado é pouco, pois o autoexotismo é proteico, assumindo formas inesperadas. Ora, a centralidade da gravura, da cópia e de testemunhos textuais como forma de conhecimento da tradição e de artistas contemporâneos caracterizou a história da arte moderna; em nenhuma circunstância é um fenômeno limitado ao mundo colonial!

(Discutirei essa questão fundamental no próximo mês, ao mencionar a exposição recentemente inaugurada em Roma, Raffaello, Parmigianino, Barocci. Metafore dello sguardo.)

Estrutura sem centro?
Nesse cenário, a poltrona vazia, protegida por uma cerimoniosa cortina de veludo ou renda, ressurge como uma metáfora poderosa da arte desauratizada.

Mas é preciso rasgar essa cortina e, finalmente, ocupar o lugar vazio.

Não é tudo.

Já passou da hora de substituir o retrato do monarca por um singelo espelho.

(Pode ser um espelho simples; como esses cuja ausência nos elevadores de serviço dos edifícios da hierárquica sociedade brasileira vale por um ensaio de sociologia. Como se nos apavorasse a ideia do súdito refestelado no sofá da sala.)

Tornada potência, a poltrona vazia ilumina a experiência de pensamento que importa radicalizar. Por que não pensar na ideia de uma estrutura sem centro como uma das possibilidades históricas da circunstância não hegemônica?

Eis a intuição despertada pelas duas exibições aqui comentadas — muito, mas muito ligeiramente.

Intuição, apenas.

Na próxima coluna, tentarei desenvolvê-la, especialmente a partir de notas acerca da mostra L’età dell’angoscia. Da Commodo a Diocleziano (180-305 d.C.).

(Conto com a sua leitura no mês de dezembro, não é mesmo?)

Coda (indesejada)
O Rei, no fundo, nunca chegaria — e todos sabiam disso muito bem.

Por vezes pessoas queridas têm o mau hábito de partir — sem nos alertar.

Não importa: em ambos os casos, é preciso manter uma cadeira apartada e, sempre à mão, un caballito de tequila.

Porque, no fundo, nunca se sabe ao certo coisa alguma.

NOTAS

[1] Rafael Tovar y de Teresa. “Presentación”. La Monarquía Hispánica en el arte. México D.F.: Instituto Nacional de Bellas Artes y Literatura, 2015, p. 6. Nas próximas citações deste catálogo, apenas indicarei o número de página.

[2] In: Luis Javier Cuesta. “América y la maniera miguelangelesca”. Oswaldo Barrera Franco & Luis Javier Cuesta (orgs.). Miguel Ángel Buonarroti. Un artista entre dos mundos. México D.F.: Instituto Nacional de Bellas Artes y Literatura, 2015, p. 38. As próximas citações serão deste ensaio e apenas mencionarei o número da página. Em outro ensaio, afirma-se com agudeza, embora o vocabulário indispensável da aemulatio seja negligenciado: “La obra de Miguel Ángel fue bastante conocida en la Nueva España y de ello da cuentan cuenta referencias literales a sus obras, así como la forma sorprendente en que algunos de los principios que animaron sus obras fueron adoptados en este territorio con enorme naturalidad. No fueron copias, sino lecturas, interpretaciones (…)”. Martha Fernández. “La impronta de Miguel Ángel en la arquitectura de la Nueva España”. Miguel Ángel Buonarroti. Un artista entre dos mundos, p. 182.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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