🔓 Os próximos 12 meses, ano novo?

Espero que neste 2021 reflitamos sobre o que os últimos anos nos ensinaram, principalmente nas derrotas da política que se quer democrática
02/01/2021

Como encarar o ano que começa, se o que terminou deixou sufocada a utópica esperança de que insistimos em reiterar a cada 12 meses? 2021 ao herdar a brutalidade da pandemia, e um mundo ameaçado pelas irracionalidades e incivilidades de um cotidiano igualmente brutal, certamente reafirmará uma das nossas muitas dualidades, aquela que nos faz olhar exclusivamente para a nossa individualidade, em contraposição ao coletivo, a polis, a inescapável convivência entre os seres humanos.

Espero que neste 2021 reflitamos sobre o que os últimos anos nos ensinaram, principalmente nas derrotas da política que se quer democrática. Essa leitura compartilhada é para os que carregam o mesmo anseio que me conduz como cidadão. Dentre os milhões de concidadãos que compartilham este meu anseio, há milhares que têm no livro, na leitura, na literatura e nas bibliotecas o seu norte, e sua profissão. Para eles, principalmente, compartilho esta coluna.

Na tensão dos nossos casulos familiares, buscamos saídas. A persistência dos isolamentos sociais impostos pela pandemia criou, pelo menos para as classes privilegiadas da pirâmide social, um falso mundo de relações virtuais que está longe de ser algo social e emocionalmente saudável para a contínua construção de comunidades de sujeitos e de sociedades democráticas.

Em países como o Brasil, com uma cultura política fraca, que se contenta com explicações simplórias de questões complexas, a ampliação das conexões virtuais pode trazer a falsa impressão de que o chamado “militante de Facebook” conseguirá mudanças substantivas das barbáries políticas dos mandatários. Se absorvermos de vez este grito passivo, correremos o risco de prolongarmos o estado destrutivo da atual política brasileira.

O espaço de opinião aberta, ou de desabafo, nas redes, utilizada individualmente, não é suficiente para mudar o que é substantivo. O que resultaram os inúmeros insultos ao casal presidencial que, em meio a 180 mil mortos pela pandemia em dezembro, montaram e se refestelaram com uma exposição fashionista brega de seus trajes de posse no Palácio do Planalto, centro do poder executivo? Ou o que resultaram os apupos virtuais ao Secretário Especial de Cultura, que posou fortemente armado em estande de tiros ao mesmo tempo em que alveja por atos e omissões a tradição cultural rica e diversa do país?

Não nos faltam exemplos do combate e da reação das redes contra as barbáries cotidianas da política pública. E igualmente não nos faltam resultados pífios, aparentes ou nulos para todo esse esforço militante na virtualidade individualista.

A pandemia que nos força ao isolamento não deveria obscurecer o principal: estamos caminhando na disputa política virtual com os mesmos equívocos políticos que caminhamos nas ruas e nos parlamentos. Alguns desses equívocos são visíveis.

O mais evidente é a desarticulação política das instituições que até há poucos anos conseguiam catalisar as reações às medidas antipopulares e antidemocráticas de qualquer governo. A dispersão dos últimos anos, a compartimentalização de movimentos sociais, somados à rejeição da ideia e atuação de partidos políticos, é a face mais visível de lideranças que não conseguem se articular para a representação política das várias expressões da sociedade. Cada vez mais os movimentos se organizam em torno de questões específicas, setoriais e imediatas, e não conseguem construir uma diretriz de atuação que tenha densidade para aglutinar, com argumentos sólidos, uma massa cada vez maior de cidadãos que se organizem e ajam em conjunto. Daí vem a efemeridade das manifestações populares nos últimos anos. Em um dia temos milhares tomando as ruas e as redes sociais em protestos e nas semanas e meses seguintes o vácuo dos silêncios nos meios virtuais e nas ruas. A explosão efêmera obterá, no máximo, a contenção parcial e limitada da barbárie, jamais irá impedi-la de continuar solapando direitos e a democracia.

Outra evidência da nossa debilidade política é a incapacidade de construção de pautas e reivindicações comuns, que podem ser construídas além de suspeitos pactos de frentes políticas, mais afeitas a situações eleitorais e que ainda carregam a desconfiança mútua entre seus membros, como bomba relógio de sua explosão futura. Os atuais partidos de centro, centro-esquerda e esquerda, têm pontos programáticos em comum face ao retrocesso democrático, mas se mostram incapazes de reunir esses programas mínimos de atuação para trabalharem em conjunto com temas que sejam necessários, compreendidas e apoiadas pela maioria da população. Se partido é parte, como a própria palavra expressa, as políticas centrais que o país necessita podem ter uma dimensão unitária, suprapartidária sem prescindir dos partidos, nesses momentos de emergência nacional. Encontrar um norte, escutar a população, organizá-la para reivindicações unitárias, isto é o que me parece urgente na política em todos os níveis.

Urge que as lideranças populares consigam proximidade e diálogo com a maioria da população, hoje assediada por falsos religiosos domesticadores, por profetas neoliberais pregadores da meritocracia enganosa, por populismos de todas as ordens e, cada vez mais, por ações de todos esses grupos visando a manutenção de um povo iletrado, sem acesso à informação, à leitura, à educação. Com essas ações combinadas, os artifícios revestidos de argumentos moralizantes são constantemente apresentados à população, principalmente pelas redes virtuais, e todos servem para o mesmo objetivo de despolitização do debate público. Como afirma o filósofo basco Daniel Innerarity, “aquilo que põe em risco a política não é (apenas) a imoralidade, e sim a má política”. (in: A política em tempos de indignação, Ed. Leya, 2017)

A renovação das relações políticas entre a população e suas lideranças pela reaproximação, escuta e troca, deve vir acompanhada da oxigenação do debate, o enfrentamento qualificado dos problemas, entendendo que o mundo contemporâneo é complexo e teve significativas mudanças nos últimos anos, mudanças que ainda estão em curso acelerado. Muito que se perdeu da capacidade de credibilidade na política, além da pouca empatia com a sociedade, é a incapacidade de compreender, total ou parcialmente, o mundo que acontece nas ruas. O mesmo Innerarity, neste livro que recomendo, diz explicitamente:

A atual perda de credibilidade dos políticos deve-se menos à corrupção que atenta contra as regras da moral privada do que aos procedimentos políticos arcaicos em cenários que dependem de tarefas históricas novas. O problema não é a carência de virtudes, mas o saber escasso, a pobreza de iniciativa e de imaginação, a indecisão e a rotina, a falta de consciência das novas responsabilidades que as mudanças sociais e políticas acarretam consigo.

Mas, afinal, o que faz essa leitura compartilhada num jornal de literatura? Além do vínculo entre literatura e política, cabe dizer que tudo que reflito e questiono para a chamada grande política, volta-se para as políticas setoriais do livro e da leitura. Quais são as pautas comuns que nos unem em novas e crescentes responsabilidades? O quanto as lideranças escutam os que estão nas pontas da cadeia do livro, da leitura e das bibliotecas? O quanto estamos estudando e compreendendo para propormos caminhos inovadores à realidade brasileira? O quanto temos de firmeza contra as iniciativas governamentais que estão sufocando a atividade cultural e educacional? O quanto estamos deixando de avançar por não nos unirmos em torno de conquistas importantes como a Lei 13.696/2018, a que impõe ao governo uma Política de Estado para a leitura?

Se o mundo está mudando celeremente, e a pandemia está mostrando às claras o pior que há em nós, não será a hora de também mudarmos para melhor e de maneira inovadora a política do país e de nossos setores de interesse e trabalho? Que 2021 nos traga saúde e coragem, combustível de toda mudança.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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