🔓 Entre a destruição e a poesia

É triste constatar que uma tenebrosa equação política de dominação parece vencer, mas se não podemos ignorar isso, também não devemos nos conformar
O filósofo italiano Domenico Losurdo, autor do memorável “Um mundo sem guerras”
01/07/2021

O amarelecido dicionário latino revela que destruere tem o sentido de demolir, derrubar, e, no seu sentido figurado, significa arruinar, enfraquecer, abater.

Essas terríveis palavras me atingem como o sopro fétido de uma realidade indesejada e, talvez, inimaginável às polianas que enxergam esses “tristes trópicos” pelas leituras das múltiplas telas dos gadgets internéticos. As mesmas que acharam “incríveis” as manifestações de 2013, que logo se vestiram com a imaculada camisa da seleção brasileira e deram respaldo à destituição sem crime da presidenta eleita. Coroaram esse manipulado périplo concedendo o voto consagrador ao candidato conhecido pela sua trajetória antidemocrática e violenta, emblema do que há de pior na nossa tradição política.

Nesse início de junho as marcas das ruínas que seguem sendo construídas no odioso cotidiano deste ano da (des)graça de 2021 se mostram nos já quase 500 mil mortos pela pandemia. Quantas vidas poderiam ser salvas se o (des)governo atual tivesse outra política que não fosse a pior de todas, a necropolítica que praticam com empenho e bizarro deleite? Ao pior dos sinais, que é o da morte infame e evitável, se somam muitos outros que nos apontam derrubadas, demolições, enfraquecimentos, abatedouros, todas convergindo para dar força à ideia determinada de destruir, propiciando um dos piores períodos históricos do Brasil. Na liderança, uma figura sem luz, vinda dos esgotos da pior forma de fazer política, distribui ordens às elites de um país que até hoje vive um republicanismo balofo, frágil, retórico e sem a necessária coragem para enfrentar sua história de violência atávica baseada em 300 anos de exploração escravocrata, geradora do racismo estrutural e de todas as nossas insuficiências enquanto nação: exclusão da maioria pobre, não reconhecimento à vida, à moradia, à saúde, ao transporte, à educação, à cultura, à leitura, entre tantos outros direitos fundamentais que já deveriam fazer parte dos nossos mais de 500 anos de história.

Se ensaiamos alguns passos enquanto nação buscando um desenvolvimento sustentável e humanizado, eles logo se esvaíram pela violência que caracteriza o motor principal da realidade política brasileira. Nos alternamos em períodos de discursos bacharelescos, de uma elite política e econômica que finge exaltar os parcos ganhos sociais daqueles que consideram seus “subalternos”, com períodos mais explícitos, nos quais essas mesmas lideranças e corporações não titubeiam quando consideram que é preciso destruir direitos conquistados. Para tanto, não hesitam em invocar aliados e utilizar sua mão armada, seja a das forças que deveriam proteger a república, seja a das forças milicianas tão ao gosto dos atuais mandatários.

Domenico Losurdo, filósofo italiano, em seu memorável livro Um mundo sem guerras, editado pela Editora Unesp, em que debate a ideia da “paz perpétua” e da universalidade do homem, ao comentar os momentos mais terríveis do colonialismo, nos ensina que este sistema de dominação contestava o conceito universal de homem. Dando o exemplo da guerra colonial de extermínio que buscava a submissão da revolta dos negros escravizados em São Domingos, no Haiti, Losurdo contrapõe Napoleão ao líder da revolução dos escravos, Toussaint Louverture. O primeiro afirmava: “Sou pelos brancos, porque sou branco; não há outra razão e esta é a melhor”. E o segundo invocava “a adoção absoluta do princípio segundo o qual nenhum homem vermelho [isto é, mulato], negro ou branco pode ser propriedade de seu semelhante”. Essa contraposição que nos revela a história, corresponde, ainda segundo Losurdo, à “teorização do Under man/Untermensch, do ‘sub-humano’” que tornou-se uma inspiração para várias teorias que deram sustentabilidade tanto às políticas pela segregação dos negros nos EUA até as ações de Hitler na colonização da Europa oriental e a escravização dos eslavos, chegando ao holocausto, todos homens e mulheres integrantes das chamadas “raças inferiores”. (pág. 405, op. cit.)

Em que este texto de Losurdo nos toca? A remissão à sólida tradição brasileira de cultivar a ideia de que nossa elite branca e proprietária é cercada de “raças inferiores” nos salta aos olhos em inúmeras práticas de políticas públicas do período pós-colonial até nossos dias: o escravismo e sua “abolição” segregacionista; o higienismo urbano como resolução aos problemas sociais das cidades; a truculência militar como fiadora de governos e algoz dos “subalternos” criando a indesejada militarização da política como norma; o projeto de dominação que tem como alicerce manter a população excluída da educação, do acesso à cultura universal, cujo maior exemplo é termos até hoje apenas 12% da população proficiente em leitura e escrita. A lista das desigualdades é interminável.

Há um padrão na ação política reacionária, alicerçada na violência permanente, que não devemos esquecer. Não basta denunciar o contínuo ataque aos direitos do atual mandatário. Ao contrário de análises que o veem como desequilibrado, há uma racionalidade política em destruir as bases sólidas que sustentam nosso frágil sentimento de democracia. Este governo, e as sombras que o envolvem, atuam para destruir o milenar esforço humano em tentar superar o uso da força nas relações entre os homens. Esse esforço se realiza com a valorização da palavra, tornando-a superior à violência, de maneira que nos possibilite renunciar à brutalidade pela força das palavras e, através dela, exercer a política e a democracia.

Hoje, as ações para destruir essa possibilidade voltam-se para criar políticas públicas que se contraponham contra todos os instrumentos que poderiam fazer florescer a consciência crítica, a autonomia intelectual, a reflexão e conclusões baseadas na ciência, no conhecimento e no compartilhamento dos saberes de raiz e universais.

Não é sem propósito a superexposição das fake news, veiculadas nas redes sociais. Ao brasileiro iletrado, que não consegue decifrar as palavras de um editorial, resta a linguagem chula, direta e alcançável pelo analfabeto funcional, cultivado metodicamente pelas elites que o querem eternamente subalterno e dominável. Está aí a propalada simplicidade do presidente, exaltada como qualidade do “homem simples” quando sua função é exatamente continuar oprimindo aqueles a quem o direito à leitura foi negado. Uma pedagogia do oprimido às avessas.

Igualmente não é exótica a ação incansável da ministra dos Direitos Humanos, assim como não é sem consequências a ação da atual secretaria especial de cultura. E o que dizer do MEC, onde o que eles chamam de “guerra ideológica” tem o seu maior protagonismo, com nefasta consequência para as crianças, a juventude, a ciência, a formação.

Por fim, não é de menor centralidade o esforço de tentar reduzir problemas de política pública complexos a questões menores que se resolvem com soluções simples e fortes. O campo aí é vasto e reducionista. A mortal epidemia vira gripezinha. A administração de empresas públicas lucrativas tem como solução suas privatizações. O multilateralismo das relações externas torna-se um clube de amigos ideológicos. O acesso aos livros e à leitura se resolve com doações aos pobres. O fomento à cultura transforma-se em benefício a projetos reacionários dos amigos. Finalmente, para fazer tudo isso funcionar, a máquina pública fica repleta de militares porque eles sabem que um manda e os outros obedecem!

É triste constatar que essa tenebrosa equação política de dominação parece vencer. Temos notado o encolhimento das ações emancipadoras, o desânimo de históricos lutadores pelos direitos, o medo que vem com a fragilidade provocada pela desagregação dos grupos solidários, tudo isso agravado pela necessidade pandêmica do isolamento social que impede o clamor unido nas ruas. A desmobilização pelos nossos direitos nos ronda.

Se não devemos menosprezar esses refluxos, também não devemos nos conformar com eles. Não é a primeira vez, e nem será a última, que bispos universais e fardados armados tentam frear a necessária luta pela equidade.

Como um alento, um recado, uma brisa, recebi, quando escrevia essa coluna, o significativo livro coletivo da comunidade de Parelheiros — Nascidos para ler no melhor lugar para se viver (SP: Ibeac/Instituto Emília/Itaú Social, 2021). Fotos lindas de bebês, da comunidade que forma leitores e cidadania, expressando vida e poesia e nos dizendo: estamos aqui, não desistam!

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

Rascunho