🔓 Aqui estão os leões

É hora do diálogo despertar novamente e, junto de outras forças progressistas, reivindicar com intensidade o direito à leitura para todos
Ilustração: Beatriz Cajé
01/05/2021

A expressão latina hic sunt leones, encontrada em mapas do Império Romano por volta do século 10 d.C., indicava territórios desconhecidos nas cartas geográficas africanas. Ao atribuírem às feras os espaços que não conheciam, os antigos conquistadores romanos cunharam a expressão que seria atribuída a áreas de ignorância ou a limites desejáveis para o saber humano, como no diálogo entre os personagens Jorge de Burgos e Guglielmo da Baskerville, na obra prima de Umberto Eco, O nome da rosa. Em diálogo, Burgos afirma a Baskerville: “Há limites além dos quais não é permitido ir. Deus queria que fosse escrito em certos papéis: hic sunt leones”.

Encontro novamente a expressão em um artigo de Zygmunt Bauman — Sintomas à procura de um objeto e um nome — no excelente livro A grande regressão, organizado por Heinrich Geiselberger, e editado no Brasil em 2019 pela Estação Liberdade. O livro traz artigos primorosos que nos ajudam a compreender melhor este difícil mundo contemporâneo. A edição brasileira conta com um importante capítulo a mais, de Renato Janine Ribeiro.

Pensar o Brasil contemporâneo, órfão de políticas públicas voltadas para o bem comum e substituídas por políticas econômicas e sociais tecnocráticas voltadas para concentrar bens e riquezas para poucos, nos obriga a refletir sobre as “áreas de ignorância” como um exercício intelectual e cidadão. Por que cidadão? Valho-me de uma célebre entrevista da veneranda economista Maria da Conceição Tavares ao programa Roda Viva, da TV Cultura, hoje muito reproduzida nas redes sociais: “Se (o economista) não se preocupa com a justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério, você é um tecnocrata”. Ou seja, no quadro histórico de desigualdades abissais da sociedade brasileira, é impossível refletir sobre políticas públicas sem levar em conta a ideia de cidadania.

As “áreas de ignorância” são magistralmente tocadas no capítulo de Bauman no referido livro. Em resposta à sua auto pergunta sobre as origens da “intolerância básica” que permearia as relações conflituosas originadas nos fenômenos contemporâneos das migrações, ele argumenta: “Em última análise, sugiro, o medo do desconhecido…”. E avança, na mesma medida dos nossos medos contemporâneos, utilizando-se do hic sunt leones: “…essas bestas misteriosas, sinistras e assustadoras, leões disfarçados de migrantes, a esta altura já abandonaram suas tocas distantes e se agacharam, furtivamente, na porta ao lado”.

Qual o alcance deste fenômeno da intolerância que opõe, em permanente conflito, “nós” e “eles” neste Brasil permeado pelo ódio e por políticas públicas excludentes? Bauman delimita metodologicamente, com o exemplo das migrações, quem são os nós e os eles nesse jogo contemporâneo de pânico migratório. Focando sua análise neste extrato social delimitado, e igualmente totalizante das questões centrais da contemporaneidade, o filósofo conceitua e compõe perguntas fundamentais para a compreensão do presente.

Como essa reflexão de Bauman pode ser útil à compreensão do Brasil? Suas reflexões e perguntas são adequadas ao contexto nacional? Como não reconhecer o Brasil quando ele questiona: o que é dado esperar de um futuro em que a até então praticada esperança do melhor porvir está sendo substituída pela angústia de um amanhã desprovido de empregos, de queda na renda familiar, de fragilidade das garantias sociais, do abismo econômico e de poder aquisitivo crescente entre os poucos que têm muito e os muitos que nada tem? Como não reconhecer nosso território, onde o desconhecimento impera secularmente, sendo alimentado com o fomento da ignorância e da anti-ciência como práticas de políticas governamentais?

Como tratar problemas de escala pública, que esperariam escuta, diálogo, análise baseada em evidências, compartilhamento, vendo-as substituídas por sandices terraplanistas ou por calculados artifícios de tecnocratas ou de políticos direcionados a impulsionar a ilusão populista, fomentando a ignorância de parte significativa da população?

As primeiras páginas da nossa grande imprensa são o retrato da nossa angústia social e política. Convivem na mesma página e pixels os saltos biliardários da exitosa e concentradora agroindústria com campanhas beneméritas de setores oligopolistas das finanças, das indústrias e dos comércios com ações emergenciais para sanar a fome das famílias dos muitos “eles”, além de acudirem hospitais com insumos básicos para o socorro às vidas que se perdem aos milhares na pandemia graças ao desgoverno cotidiano.

Não contesto ações beneméritas de atendimento social. Mas aponto suas contradições. Onde estão essas mesmas forças poderosas na reivindicação de que se cumpram as leis que sustentam o SUS, na defesa ativa ao direito constitucional à vida, no direito à informação livre, à educação, à cultura, entre tantos direitos assegurados na lei maior e em leis derivadas da Constituição Cidadã? Onde estão as forças não submetidas aos territórios dos leões para conter a sanha genocida de um governo internacionalmente conhecido como contrário ao bem-estar e à vida digna de seu povo?

Nossa encruzilhada hoje não é mais uma simples disputa político-partidária em projetos pontualmente antagônicos. Vivemos hoje, todos nós, na encruzilhada das políticas públicas que valorizam a vida e aquelas que a dizimam, literal e metaforicamente.

Como sabemos, os exemplos dessas políticas regressivas são inúmeros, algumas repetidas insistentemente, como a presente nova tentativa de se taxar o livro em 12% proposto pelo ministro da economia. O argumento de que quem compra livro é rico e aos pobres o governo provê, é contrariado pelas pesquisas, como a última Retratos da Leitura no Brasil, que explicita com dados recolhidos pelo Ibope Inteligência: a maior parte dos leitores brasileiros se concentra na classe C, sendo que as classes D e E apresentam números expressivos. Resumidamente, 4% dos leitores de livros pertencem à classe A, 26% integram a classe B, 49% fazem parte da classe C e 21% estão nas classes D e E. O objetivo principal dessa iniciativa já foi sobejamente denunciado: cumprir agenda ideológica de extrema direita ao dificultar ao máximo o acesso aos livros e infringir danos permanentes à indústria livreira independente, já que os principais prejudicados serão os pequenos e médios editores e as pequenas e médias livrarias. Cardápio perfeito para a “elite branca”, como denominou antologicamente Cláudio Lembo, que cumpre a agenda separatista entre seus pares fundamentalistas, preservadores de privilégios ameaçados pelos “leões” que, cada vez mais, se sentam às suas portas.

Se a complexidade do mundo globalizado é árdua para o entendimento, se não há soluções simples capazes de resolver problemas complexos, por outro lado já sabemos algumas respostas fundamentais. Uma delas é a potencialidade, a força transformadora das ações que educam para a autonomia e a liberdade de pensamento e questionamento. Ações que possuem entre suas principais fortalezas, a leitura.

Bauman termina seu artigo com um elogio à prática de uma educação voltada para o diálogo. Para nós, milhares de militantes pela formação leitora, diversos em seus muitos nichos do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas, já soubemos em passado recente praticar a arte do diálogo, baseado na escuta e no objetivo maior de fazer o Brasil produzir uma Política de Estado para a formação de leitores. Construímos o Plano Nacional do Livro e Leitura e observamos os seus desdobramentos ainda em curso nos Estados e nos Municípios. E conquistamos a lei 13.696/2018 que nos legou a Política Nacional de Leitura e Escrita, obviamente engavetada pelo desgoverno presente.

É hora desse diálogo despertar novamente, e junto das outras forças progressistas, reivindicar com força o direito à leitura para todos, contribuindo para a educação democrática e laica que, sabemos, é imprescindível. Já trilhamos e sabemos o caminho, às lideranças caberá o chamado unificador.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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