🔓 Aniquilar ou preservar, eis a questão

A equação dos poderosos de plantão é clara e diária: eliminar a ameaça que pode tirar-lhes o poder
Ilustração: Mariana Tavares
02/08/2022

O início deste julho de 2022 estará marcado por alguns fatos que fizeram história no país, tanto para colocá-lo nas profundezas do esgoto enquanto polis, quanto para exaltar as opções inclusivas e democráticas de parcela expressiva de seu povo.

Dois movimentos antagônicos ocorreram na mesma semana e se chocam enquanto aniquilação ou preservação da civilidade e da convivência política baseada na violência ou no debate de argumentos e forças não armadas.

Do lado do pior fruto do fascismo que sustenta o ódio e a negação do contraditório, tivemos o assassinato de Marcelo Arruda, líder petista em Foz do Iguaçu, por um policial tomado pela fúria da aniquilação do outro que o contradiz. Invadindo a festa de aniversário de seu “inimigo”, gritava o nome do presidente que amiúde incentiva seus seguidores ao aniquilamento do partido político que mais o combate e que abriga o candidato preferencial à presidência da república segundo todas as pesquisas. A equação dos poderosos de plantão é clara e diária: eliminar a ameaça que pode tirar-lhes o poder. Poder que a democracia impõe que seja efêmero, mas que os candidatos a tiranos e os fascistas desejam eternizar.

As mazelas que acompanham nossa triste e sofrida história de exclusão de direitos para todos são constitutivos ao ato do assassino de Foz de Iguaçu. O pano de fundo permanente continua sendo o racismo estrutural e a violência das relações que subjugam cotidianamente as mulheres e os “diferentes”, perpetuando no poder de mando em múltiplas instâncias homens brancos, velhos e muito ricos. Mas seria ingenuidade afirmar que o assassinato foi fruto apenas de nossas desigualdades e desequilíbrios enquanto civilização.

Se há fatores objetivos na história política brasileira que precisamos considerar, mirando o presente à luz do passado e na esperança do futuro, é preciso também entender que o malefício do bolsonarismo enquanto fator principal de exaltação da barbárie é hoje o pior de nossos males. E a barbárie nunca pode ser naturalizada, como se sua realização em nossas vidas fosse algo que fluísse como um riacho. Naturalizar a barbárie é aceitá-la como inevitável. Outro equívoco é entendê-la como resultado de uma polarização entre contrários que se identificam e se igualam em seus extremos, situação que não existe na atual situação política e social brasileira.

Em colunas anteriores analisei o grau de ignorância que encontramos em grande parte de nosso povo, ignorância que significa ausência de conhecimentos, sejam os adquiridos formalmente, sejam aqueles que aprendemos com os saberes tradicionais na lida do viver.

Se partirmos dessa premissa, se consideramos verdadeira esta tragédia civilizatória promovida por uma elite secular que restringiu barbaramente o acesso à educação e à cultura à maioria do povo brasileiro, não será muito difícil percebermos que o discurso de ódio do mandatário maior e seus seguidores, voltado a combater o pensamento autônomo e libertador de nossos maiores cientistas e humanistas e de nossos mestres populares, discurso que demoniza todo o campo democrático, é o combustível imediato e detonador de todo ato de barbárie que enfrentamos diariamente desde que perdemos o rumo da débil democracia brasileira em 2016.

A palavra do candidato a tirano carrega a arma do assassino, infla a atitude violenta de muitos em um debate de ideias, faz cegar a visão de seus discípulos aos mais evidentes desatinos de seu chefe.

Não há radicalização polarizada em dois lados, mas discurso persuasivo e muitas vezes eficaz, de exaltação do ódio, de um único lado, o do candidato a tirano, que precisa eliminar todos que se opõem ao seu desejo de poder permanente. Por consequência, esse modo de ser na política se alastra por todo o tecido social. Desde o resgate dos velhos machistas, que perderam seus poderes perante esposas e filhas, e que vislumbram retomar seus postos de dominadores, até a rixa entre vizinhos que se valem das armas, hoje distribuídas às mãos-cheias, para resolverem suas desavenças.

A conivência e a convivência com a necropolítica corroem a espinha dorsal da sociedade, quebrando-a em suas relações sociais e interpessoais. Pergunte-se: por que minhas relações familiares e pessoais estão muito mais tensas do que em épocas anteriores? Como permitimos que divergências de opiniões políticas ou religiosas destruíssem amizades entre pessoas que se conhecem a vida toda ou entre irmãos e primos de uma mesma família?

A tragédia que tirou a vida de uma pessoa que apenas expressava, na alegria de uma festa de aniversário familiar, a sua preferência política, é a expressão mais perversa e cruel da política entendida como eliminação física dos adversários. Já convivemos várias vezes no Brasil com este entendimento da política como eliminação do outro nas ditaduras que tivemos. Hoje, o único polo que tem saudades desses tempos horrorosos está sentado na cadeira da presidência da república, cercado pelos seus aliados, muitos deles “filhotes da ditadura”, alcunha forjada pelo saudoso e combativo Leonel Brizola. É preciso dar um basta a esta sanha de terror que enterrará o país talvez de maneira irreversível.

Do lado das forças não armadas, da civilidade e do amor à ciência, à cultura, à educação e contra a ignorância, tivemos na mesma semana um público estrondoso na mais frequentada Bienal do Livro de São Paulo em sua história. Poucas semanas antes, A Feira de Livros, em frente do histórico estádio do Pacaembu, acolheu um público enorme e alegre que foi à procura de livros e convivência com autores e debates de temas que ficaram longe do discurso medíocre e insuflador do ódio à democracia e aos direitos humanos.

Não nos iludamos atribuindo apenas ao longo confinamento causado pela covid-19, ou a não realização da Bienal em 2020, a grande afluência de público que lotou todos os dias os pavilhões de exposição da capital paulista durante nove dias. Não tivemos apenas afluxo superior de pessoas, mas compras que ultrapassaram mais que o dobro de anos anteriores, conforme relataram várias editoras. As pessoas foram à Bienal e compraram livros em época de grave crise financeira.

Este fato revela muito do que podemos esperançar para o futuro porque aponta o que parte expressiva de nossa população deseja. Em um período que os poderes federais facilitam a compra de armas, muitos preferem comprar livros. Quando todo o esforço da chamada “guerra cultural”, assim denominada pelos sabidos deste governo, se volta para o discurso anti-humanista e pró difusão de preceitos religiosos que se sobrepõem à razão, tivemos esgotados nos estandes das editoras universitárias livros que debatem teorias e práticas do pensamento científico contemporâneo e clássico.

Se o “fenômeno” Bienal do Livro de SP 2022 não é um dado absoluto de desejo de mudança para sairmos deste caos civilizatório em que nos metemos, certamente ele é um sinal potente para tentarmos entender que o movimento atual da sociedade brasileira tende a ser mais a favor de um Estado democrático do que o dominado pela violência e pela ignorância que o atual desgoverno representa.

Num país pauperizado pelo neoliberalismo avassalador da atual política econômica; num país que viu voltarem a fome e a insegurança alimentar para milhões; num país que viu milhares dos seus compatriotas morrerem de covid-19, mortes provocadas pelo negacionismo que gerenciou pessimamente a crise sanitária no país; num país de sem-teto e sem-trabalho, os sinais de esperança começam a ser traduzidos pela cultura e pelo desejo de mais e melhor conhecimento para todos.

Por enquanto são sinais, precisamos que eles se materializem em mudanças reais, que clamem por políticas públicas fortes e duradouras, políticas de Estado, que nos libertem definitivamente da ameaça tirânica de parte da elite nacional que quer voltar à Casa Grande e à Senzala. É preciso dar um basta à regressão se quisermos, algum dia, nos chamarmos de nação.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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