Minirresenhas para desconcerto & fuga

Seis livros da literatura brasileira contemporânea analisados de maneira concisa
Ilustração: Tereza Yamashita
01/12/2022

Era tanto o meu nervosismo durante a apuração das eleições, que fui incapaz de permanecer olhando para a TV. Fugir para onde? Como baixar o batimento cardíaco que parecia repercutir nas pálpebras e nos ouvidos? Sem saber como escapar da tensão, fui automaticamente para o lugar onde passo os dias, o escritório. Dei uma olhada nos arquivos do computador para conferir os trabalhos por fazer, resenhas, pareceres para revistas e agências de fomento, relatórios de alunos etc. — vários deles com deadlines estourados. Quem sabe o dever me tirasse do meio do redemunho, ao menos por algumas horas.

Foi quando me deparei com um arquivo word com anotações esparsas de várias resenhas que comecei a fazer e acabei abandonando a meio. Comecei a trabalhar nas que me pareciam mais arrumadas. Não muito depois, dentro e fora de casa, as pessoas gritavam, de pura alegria e desafogo. O fascismo bolsonarista havia sido cabalmente derrotado, a despeito do jogo sujo que fizeram durante quatro anos, de que não foi exceção o próprio dia da eleição.

Voltei à TV a tempo de ouvir o vibrante discurso de vitória de Lula na avenida Paulista, acompanhado pelos gritos da multidão que não sei se mais o aclamavam ou lhe pediam cuidados. Três dias depois, quando os golpistas e arruaceiros já começavam a desobstruir as vias e enfiar a bandeira no saco, voltei ao computador para ver o que havia escrito naquelas horas fatais de que pouco me lembrava.

Encontrei prontinho um documento com as seis minirresenhas abaixo. Se não fizerem sentido, já sabem o sentido que tinham: o de ordenar coração, cabeça e estômago em meio ao caos e à violência dos tempos que correm.

Nunca houve tanto fim como agora, de Evandro Affonso Ferreira
Caderno de memórias em primeira pessoa escrita por um professor, que reinterpreta, com referências clássicas, frases sincopadas e vocabulário precioso, o seu tempo de menino de rua. Ao seu lado, enfrentando a vida miserável ao relento e a indiferença das pessoas da cidade, havia um saudoso casal de amigos fiéis. O relato da vida ínfima e desgraçada dos garotos é feito paradoxalmente em registro alto, solene, mas quebrado pelo viés cômico. A mescla produz um equilíbrio precário de horror e lirismo, ajustado ironicamente a uma existência absurda, que também inclui memória inventada e apologia da literatura. A literatura, de resto, é a protagonista do livro, entendida como um nexo imaginário e melancólico entre a dureza da miséria e a ornamentação da linguagem.

A jaca do cemitério é mais doce, de Manuel Herzog
História de um operário que manda assassinar a mulher que o traíra, e que, depois disso, mantém em casa uma compostagem aparentemente alimentada com o corpo da mulher morta. Os eventos são registrados num diário em que o protagonista confessa a culpa pela morte dela e do amante. O tom geral é agridoce, tendo Dalton Trevisan como matriz bem reconhecível sobretudo pelo emprego da frase curta e elíptica, com acentos perversos e pitorescos da vida de classe média baixa. O processo progressivo de alucinação do protagonista é construído com sutileza e humor, sendo impulsionado pela cabala, pelas lembranças judaicas da tia e da mãe da mulher, assim como pelas contradições do convívio familiar.

Correr com rinocerontes, de Cristiano Baldi
Narrativa em primeira pessoa, com registro informal, mas cínico e intelectualizado, de um estudante gaúcho que, às vésperas de defender o mestrado em literatura na USP, volta a Porto Alegre para acompanhar o caso escabroso da mãe, a qual, vivendo em estado vegetativo numa clínica, fora estuprada junto com outros pacientes. Ao lado dos avós e da namorada paulistana, o estudante relembra a vida em família, desde a infância — com destaque para a beleza e gentileza da mãe, bem como para o iluminismo do avô, sempre contido nas piores situações —, até quase o final quando a polícia admite não ter pistas do agressor. O traço emocional do relato é obtido por meio do contraponto entre a violência sofrida pela família e os comentários sarcásticos do narrador, atravessados pelas sessões de sexo oral com a namorada.

Outro lugar, de Luis S. Krausz
Relato de memórias e de viagens de um rapaz de ascendência judaica, cruzando diferentes temporalidades e espaços: desde o tempo dos antepassados austríacos até o último governo da ditadura militar e o início da Nova República. A narrativa é conduzida por fluxos de memória entre São Paulo, onde se criou, e Nova York, onde vai estudar na Columbia University. Nas suas lembranças, a personagem mais cara é de um amigo de infância talentoso, que padece de tuberculose óssea, e se revela grande apreciador de fotografias que registravam a emergência da megalópole paulista. Nos momentos iniciais, a narrativa memorialista avança sem pontos finais, como num jorro, mas depois se torna mais convencional. No todo, predomina a memória étnica da fuga dos judeus diante de diversas perseguições históricas. Há alguma rigidez na composição das personagens e maior habilidade no uso da descrição (ékfrasis) das fotos de época.

A noite da espera, de Milton Hatoum
Relato memorialista, em forma de diário, sobrepondo dois tempos da vida de um rapaz de classe média paulista. O primeiro se passa entre 1968 e 1972, indo desde a separação dos pais em São Paulo, até a mudança com o pai para Brasília, onde cursa a UnB, entra para um coletivo de teatro e uma revista literária. Aí acompanha o famigerado processo de intervenção e invasão da Universidade, ao lado de amigos de diferente origem, classe e destino, que se dividem entre a militância e o desbunde leve. O segundo período, menos desenvolvido, passa-se em 1978, quando o protagonista se encontra no exílio em Paris e aplica-se a remontar o diário dos anos em Brasília, sem jamais ter revisto a mãe. A narrativa é convencional, com notas banais e didáticas sobre os acontecimentos de época; por vezes, ganha mesmo certo tom pitoresco, como num episódio envolvendo o futuro presidente Collor. (Acrescento que a esse volume seguiu-se um segundo de mesmo assunto, que resenhei para a Folha de S. Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/milton-hatoum-falha-ao-ser-literario-demais-em-novo-romance.shtml)

Pretérito imperfeito, de B. Kucinski
Relato do pai de um filho adotado e dependente químico a respeito das habituais mentiras, roubos, internações e demais problemas com as quais teve de conviver por anos. A sequência de decepções do pai culmina na decisão de romper com o filho e lhe escrever a carta que dá início à narrativa. A sucessão de eventos desastrosos é suspensa apenas ao final do relato com o aceno de uma reconciliação, já com o filho trabalhando na Jordânia, aparentemente livre das drogas. Os capítulos são curtos, a escrita é convencional, com incorporação de explicações didáticas de médicos e intelectuais que trataram de casos de dependência. O relato tem ares de autoficção com algum ranço de autoajuda, embora mitigada pelo tom duro e pouco esperançoso.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho