O lugar da cena, mas não só

Se nos textos de ficção sempre há um lugar em que as ações se desenvolvem, ele sempre terá uma intenção no conjunto da narrativa
Ilustração: Denise Gonçalves
21/09/2020

1.
Na vida, os espaços em que estamos são indiferentes ao nosso sofrimento ou à nossa felicidade. É possível sentir a mesma angústia num deserto ou num shopping. A depressão pode ocorrer tanto num dia úmido e nublado como num dia primaveril. Mario Quintana, contudo, tem lugares preferenciais: “Sempre é melhor chorar junto à lareira quente / Do que na rua, ao desabrigo”. De qualquer forma não haverá escolha, pois ter ou não ter lareira depende da condição socioeconômica da pessoa. Já um cavalheiro britânico à antiga consideraria vulgar alterar seu mood de acordo com o tempo meteorológico. Por isso os ingleses resistiram, impávidos, ao calor indiano. Os psicanalistas sabem bem disso, focando-se na variável interioridade de seu analisando, enquanto o consultório terá sempre as mesmas cortinas, a mesma lâmpada ao lado do sofá, a mesma caixa de lenços de papel. Isso é na vida.

2.
Na ficção, constructo artificial, é diferente. No romance há cenas; cenas são criadas pelo ficcionista, e as cenas acontecem em algum espaço. E o espaço precisa ser inventado — ainda que ele exista. Ainda que exista…? O paradoxo faz sentido pela percepção individual: o Passeio Público de José de Alencar não é o mesmo de Machado de Assis. As múltiplas representações pictóricas da mesma catedral de Rouen ampliaram a fama de Monet, e sobre essa série disse Clemenceau: “Uma forma nova de olhar, de sentir…”. Sartre reclamava, em As palavras, que se sentiu traído quando conheceu “pessoalmente” o Jardin du Louxembourg, do qual ele lia apenas as descrições literárias. Os romances distópicos ou de fantasia, atualmente na moda, passam-se em lugares alterados do futuro ou do passado. A ilha do dr. Moreau dá-se numa ilha que não existe. Em suma: se sempre há um lugar em que as ações se desenvolvem, ele sempre terá uma intenção no conjunto da narrativa. Impossível escapar disso.

3.
Não se pode confundir os espaços em que ocorrem as ações com “cenários”, no antigo sentido teatral do termo. Os dramas da antiguidade, submetidos à unidade de tempo e de lugar, tinham um cenário, e ele precisava valer para qualquer momento e humor da peça. Isso chegou até a dramaturgia francesa do século 17. Na ficção, as coisas não funcionam assim. O espaço nunca será um cenário por uma razão bem simples: o ficcionista criará o espaço para atender às intenções do conflito. Por isso, não há espaço “inocente” na ficção. Por vezes, o ficcionista sem experiência determina aleatoriamente o lugar em que vai situar a cena, como se jogasse numa roleta. Trata-se de um equívoco de composição, que pode provocar assimetrias no enredo. Há uma grande diferença entre colocar uma cena íntima, para “discutir a relação”, na iluminada algazarra de uma churrascaria à uma da tarde ou num obscuro e taciturno bar às onze da noite. Uma ou outra cena pode dar certo é claro, mas o andamento da conversa será diferente, talvez não o melhor para aquela narrativa, salvo se o intuito seja causar oposição: relembre-se uma cena de Mme. Bovary, em que Flaubert põe o diálogo amoroso entre Emma e o patife Rodophe num prédio em que chegam os sons dos pregões de uma feira agrícola, os quais se intercalam grotescamente na fala de Rodolphe. Diz o sedutor a Emma: “Uma centena de vezes eu quis partir, e, no entanto, eu a segui, fiquei./ ‘Estrume’/ — Assim como ficaria esta noite, amanhã, nos outros dias, toda a minha vida!”

4.
É possível perceber, portanto, que, na narrativa ficcional, não há espaço objetivo — assim como na fotografia não há tema objetivo. Quando a fotografia se vulgarizou, nos meados do século 19, e, particularmente, o retrato, Baudelaire condenou-a por sua objetividade, feita a propósito para retirar “o que sobra de dignidade dos franceses”. Mas se trata de uma objetividade ilusória, como se sabe. O olho do fotógrafo irá dar sentido a um motivo que, sem essa mediação, poderá não dizer nada a outra pessoa. Sebastião Salgado nos mostra outros índios, surpreendentes, pois eles passam não só pelo olho e pela lente, mas pelo fio da consciência e da ideologia do grande artista brasileiro. Assim também é na ficção.

5.
Incluam-se aqui, no conceito de espaço, porque acabam desempenhando o mesmo papel, os objetos ou seres inanimados que pertencem ou estão no lugar: uma janela, um tapete, um laptop, um teclado, uma máscara sanitária. Para todos os efeitos, são coisas com que a personagem tem contato e, essencialmente, com elas interage. Uma dúzia de belas tulipas encarnadas adquirem uma aparência perversa no célebre poema da enferma Sylvia Plath, aqui na versão de Enrique Carretero:

Sua vermelhidão fala com minha ferida, combina com ela./ Elas são sutis: parecem flutuar, embora me afundem/ Perturbando-me com suas súbitas línguas e sua cor,/ Uma dúzia de pesos de chumbo vermelhos ao redor do meu pescoço.

Uma pessoa saudável escreveria um poema bem diferente, talvez inferior.

6.
O habitual é que o espaço literário reitere o estado emocional da personagem. Está em A mulher de trinta anos: “As manhãs brumosas, um céu de claridade fraca, nuvens correndo baixo sob uma abóbada cinzenta ajustavam-se ao estado de sua doença mental”. Truque do escritor: foi Balzac quem, a partir da enfermidade de Julie, criou ad hoc as tais manhãs cheias de melancolia. É possível, entretanto, pensar em casos em que o espaço age por contraste: Artur Corvelo, de A capital!, de Eça de Queirós, está louco de fúria contra uma trama de seus falsos amigos, e por isso foi sentar-se num parque, “debaixo de uma árvore, e ali ficou ruminando sua cólera. Uma grande doçura parecia cair do alto azul, puríssimo; o rumor da cidade chegava por fragmentos abafados, como se ficasse preso, enleado nas ramagens meio despidas”. O efeito retórico é o mesmo: tanto o espaço de Eça como de Balzac, um por reiteração, outro por contraste, potencializam o que se passa na interioridade da personagem. É escolher. O importante é que não estejam ali por acaso.

7.
Por último, Aristóteles pode ser de ajuda a ficcionistas do século 21. Dizia ele que as coisas devem ser apresentadas em estado de ação. Alguém pode escrever: “Neste momento, estou sozinho no meu quarto, e estou perturbado”. Embora correto, é muito amador. Já uma escrita profissional dirá: “A solidão do meu quarto me perturba”. Neste caso, o abandono do espaço ganhou vida e drama, integrando-se no sentimento da personagem. (E deixamos lá para trás dois medonhos verbos auxiliares, nada mau.) E é assim que se adquire a competência técnica. Se fosse possível dar uma sugestão, essa seria, e válida não apenas para o espaço ficcional: nos inícios da escrita literária, é preciso ter consciência dos recursos utilizados; com o tempo, esses recursos incorporam-se às ferramentas autorais, as quais, depois, serão utilizadas de modo instintivo. Para brincar com o aforismo clássico poeta nascitur, non fit, já parafraseado com excelência por Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce escritor, faz-se”.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho