Guia de jornada

O ato de mediar uma leitura, isto é, de colocar-se entre o leitor ou a leitora e um texto pede delicadeza, competência, humildade e respeito
Ilustração: Maíra Lacerda
02/01/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Já estamos terminando. Não é tão difícil. Eu te disse que não era. Agora estou entendendo um pouco mais deste elefante.
O elefante, Rogério Pereira
Rascunho 242, junho de 2020

Um apelo dramático: “Não entendi nada” e, nele, o desamparo e a perplexidade de uma condição comum a quem lê. O indivíduo é alfabetizado, reconhece o código, decifra palavras, sentenças. Mas o que elas fazem juntas? O que dizem? Porque dizem alguma coisa, uma vez que foram publicadas. Impressas sobre suporte material ou na fluidez da tela, estão ali para um ato de comunicação. “É um poema”, digo-lhe.“Eu sei, pai.” O leitor reconhece o gênero, o que não ajuda em nada, porque reconhece também o dever embutido, a obrigação de entender, interpretar, satisfazer a autoridade que o incumbiu da tarefa. Pode pouco o leitor, em tais casos, apenas reforçar a incompreensão e acrescentar: “É muito chato”.

Não há outra maneira de alcançar a bonança senão tomar o livro em que figura o poema, anunciar: “Vamos ler juntos”. Tem início o percurso pela terra estrangeira e, às vezes, particularmente agreste de um texto. Para consolo, o fato de que este jovem não está só, nunca esteve, embora ainda não o saiba. Enfrenta uma operação na qual deverá produzir sentidos de forma que, ao final, o poema apresente um significado plausível e, se possível, útil. Isto é, o leitor deve aprender algo com o que leu, no caso, mostrar aptidão para seguir adiante na escalada pedagógica. Não pensamos assim, acreditamos que este algo não deva servir para nada, em qualquer dimensão prática. Mas deverá servir para torná-lo mais sensível, mobilizá-lo em direção à própria humanidade, às dúvidas e aos anseios comuns. Seu próprio repertório é insuficiente, necessitará de uma voz que se junte à dele para avançar pela construção linguística e textual, num ritmo paciente e confiante. O acompanhante deverá buscar o contexto, a época em que o poema foi escrito, elaborar uma síntese, esclarecer a proposta do autor e levantar significados para a experiência humana. Esse trajeto não precisa ser de todo explícito, muitas vezes a insinuação basta para que o leitor sinta-se em território levemente conhecido, ganhe coragem e avance por si.

Um dos mais caros exemplos dessa jornada de leitor incipiente pelo texto que sequer domina em termos de código é o de Graciliano Ramos, conforme descrito em Infância. Com um processo de alfabetização traumático e ainda incompleto, o menino se vê, certa noite, frente a uma situação assustadora. O pai ordena que pegue um livro e comece a ler. Graciliano antevê as pancadas e os xingamentos pela leitura sofrível que fará. De forma inesperada, o pai resolve agir como esse que apresentamos acima: faz perguntas para ouvir o filho sobre a compreensão e, percebendo a incapacidade do jovem para respondê-las, começa o trabalho de orientação de leitura: identifica o gênero textual literário, resume a história, traduz as expressões difíceis. O menino sente-se maravilhado com a associação das experiências inéditas: a paciência e disponibilidade do pai e a leitura de ficção. Ainda que pouco depois o pai se canse da tarefa e deixe o garoto no meio da jornada, ele decide continuá-la. Pede auxílio à prima e empreende por si o restante da leitura.

A repetição, o pisar de novo sobre o caminho já feito com maior atenção às minúcias, a busca de organização dos fatos, o intenso trabalho de abertura de espaço para os referenciais novos, permite que Graciliano alcance aquela utilidade, que arranca dele a constatação de um novo lugar para si no mundo. Novo lugar também descortinado para os alunos pobres de Monsieur Bernard, que, por meio de histórias lidas em seus livros de classe ou por suas narrações, vislumbravam outros tempos e espaços para além de sua escaldante Argélia. Com mestria pedagógica e humildade, o professor caminhava ao lado da turma, embrenhado com todos a fim de compreender os sentidos dados pelas grandezas e pelas misérias do mundo.

Não se lê “com um clique” ou em total liberdade. Nós e os textos estamos circunscritos à história, ou seja, conferimos os sentidos à disposição em nosso tempo para uma obra produzida no tempo dela. Toda uma negociação deve ser realizada entre o hoje em que lemos e o ontem em que se escreveu, entre o lugar em que se vive e o lugar de onde vem a obra. O ato de ler é trabalho, e como em todo trabalho podem acontecer, e acontecem, encontros e desencontros. Para multiplicar os encontros, é preciso reconhecer o processo de formação de sentidos, que inclui a seleção do significado para uma palavra ou sentença dentre os tantos possíveis. O entendimento de um texto dá-se por etapas que, somadas gradativamente, organizam e permitem a compreensão do conjunto. Ler uma obra pode equivaler à realização de uma jornada, com seu leque de deslumbramentos, dificuldades, paradas, desalentos.

Um jovem contemporâneo e seu pai, Graciliano e também o pai, o professor de Albert Camus, bem descrito por ele em O primeiro homem, todos sustentam uma ação comum, a de mediar a leitura de um texto literário. A função de mediador, mediadora de leitura sempre existiu, e sempre ocupou exatamente o lugar que podemos reconhecer nesses exemplos. Conforme se desenvolvem os estudos teóricos e o ato de ler ganha projeção na cena pública, com ampliação significativa de leitores e conquista de espaços, o termo mediador alcança o status de uma rubrica comum a todos os indivíduos envolvidos com atos de leitura. Certo ar de espetáculo e a mescla confusa de conceitos podem acontecer em função da grande expansão de acesso a uma prática que por muito tempo foi prerrogativa da elite intelectual ou financeira. Portanto, delimitar o conceito de mediação de leitura permite esclarecer pontos de atuação que são delicados e pedem competência em seu exercício.

O papel de formador de leitores e, em consequência, o de mediação de leitura — encontrado tantas vezes em bibliotecários, professoras, familiares, amigos — reivindica-se também no presente por blogues, clubes de leitura, publicações variadas, em saudável índice de democratização da leitura. Por outro lado, nem sempre essas vozes primam por um conhecimento devido de literatura e perspectivas contraditórias, ou a reboque de visões ideológicas excludentes, atropelam o campo da leitura literária. O ato de mediar uma leitura, isto é, de colocar-se entre o leitor ou a leitora e um texto pede delicadeza, competência, humildade, respeito. No caso da escola, o texto a ler não deve ser dado sem a conversa antes, a paixão na leitura e pelo texto, a chamada à comunicação entre a dupla inviolável: o texto e quem o lê. Entregar ao aluno o poema como equação matemática a resolver é ter no fracasso a rota previsível. No exemplo inicial, como terão ficado os outros jovens da turma, sem pai, mãe ou irmão mais velho, atentos à dificuldade e habilitados a intervir de maneira construtiva?

Hans Magnus Enzensberger, interessantíssimo pensador contemporâneo, tem um artigo sobre as ações nefastas da mediação escolar entre jovens e poesia. Desautorizar uma leitura em processo, “atender à interpretação correta” são atitudes capazes de conduzir ao caminho contrário do interesse pela leitura e de sua prática, constante e prazerosa. A única atitude possível para um mediador de leitura deve ser a de alguém que conduz o leitor por sua jornada, sem, no entanto, controlar seu percurso.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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