Caderno De Notas (10)

Os percalços de quem se aventura pelo infinito mundo das biografias
01/08/2003

Você, jovem biógrafo, que está pronto para começar a primeira biografia, antes disso, antes de se empenhar numa aventura que antevejo fadada à decepção e ao desengano, pare um pouco e me ouça. Não vou alardear a voz dos maduros, ou dos sensatos, ou dos que “têm a dizer”, até porque, no terreno das biografias, quanto mais se escava, mais matéria disforme — indefinição, emplastro, borra, dúvidas — se encontra.

Não venho oferecer soluções, longe de mim desejar tal insensatez. Se pudesse resumir tudo o que desejo dizer numa frase, eu diria: vá, se afaste, porque o que você vai ouvir não é nada consolador. Tudo o que vou dizer, além disso, é (mas poderia realmente ser de outro modo?) fruto de uma experiência absolutamente pessoal, e por isso intransferível — então, o melhor talvez seja que você me faça ouvidos moucos, que interrompa a leitura aqui mesmo e fuja o mais rápido possível do desarranjo que me preparo para oferecer. Não escrevo para causar estragos, mas para relatar os embaraços que você se prepara para viver. E nem sempre é bom conhecer de véspera nossas derrotas.

Tudo o que começo a dizer vem de uma experiência na verdade bastante restrita: uma biografia clássica do poeta Vinicius de Moraes, um ensaio breve sobre a relação de Vinicius com o Rio de Janeiro, um ensaio biográfico sobre o poeta João Cabral de Melo Neto e um esboço de retrato do cronista Rubem Braga. Talvez a isso se possa acrescentar os retratos reunidos em meu livro Inventário das sombras — mas esses perfis já estão muito contaminados pela divagação, pelo sonho, pelos engodos da memória, isto é, pela ficção — pela mentira, enfim. E nada parece assustar mais os biógrafos que as histórias de mentiroso.

Bem, chega de advertências tolas: se, apesar disso continuo a escrever, é porque alguma eficácia, ou ao menos algum consolo entrevejo no que pretendo dizer. Tome o que vai ler como uma advertência, como esses sinais de “perigo”, “curvas perigosas”, “pista em declive”, que se instalam nas bordas das rodovias para proteger os motoristas de si mesmos. Sinais que não diminuem o risco iminente, mas apenas nos preparam para ele.

Mas vamos aos fatos — frase que aos biógrafos encanta, mas que em mim só produz calafrios! O primeiro problema com que você se defrontará, meu jovem biógrafo, é a soberba. Não a arrogância pessoal (você pode ser um sujeito inocente, rigoroso, sincero, sem vaidades, nada disso adiantará), mas um tipo de presunção que é inerente ao gênero literário que você começa a praticar, que o define: o desejo de tudo dizer. Ah, triste desejo…

Não falo aqui dos biógrafos calhordas, dos falsificadores, dos oportunistas, daqueles que se põem a escrever já deliberadamente decididos a adulterar, desvirtuar e mentir. Estes são falsificadores, e não biógrafos. Falo dos sujeitos como você mesmo deseja ser, sinceramente empenhados na busca da verdade, da totalidade, na caça daquilo que se perdeu, na reconstituição da vida de homens que vivos já não mais estão. Para esses sim, contudo, a dor do fracasso será muito mais aguda.

A biografia, enquanto gênero literário, é um gênero sem fim. O dicionário o define como “descrição ou história da vida de uma pessoa”. Em sua origem grega, o termo já diz: ele pretende ser a “escrita de uma vida”, sua tradução em palavras — a língua fisgando, recuperando, reconstruindo aquilo que se perdeu (e não podemos esquecer que a maior parte dos biografados está morta). Será que a vida de alguém cabe numa jaula? — eu pergunto. Será que a vida pode ter fronteiras nítidas?

Os dicionários literários distinguem a biografia, em sentido preciso, da “biografia romanceada” — aquela em que os claros, os vazios, as imprecisões são preenchidos pela imaginação. Ao contrário, falo aqui da biografia clássica — e biógrafo, a rigor, é o autor desse gênero clássico, dessa biografia no sentido pleno, isto é, sem claros, que pretende esgotar a vida de alguém, quase que como a ressuscitar seu morto.

Um projeto que, você vê, só pode fracassar. Mesmo que pudéssemos imaginar que um biógrafo fosse capaz de recuperar e reconstituir todos os fatos da vida de seu biografado (mas esta é só uma hipótese fantasiosa), ainda assim toda uma outra metade desta vida, que não se expressa em fatos mas que fica na esfera dos pensamentos, dos sentimentos, das emoções, dos laços afetivos, da memória, dos conflitos internos, dos segredos, das coisas impensáveis, tudo isso se perderia.

Os biógrafos costumam se ver como praticantes de um gênero muito mais próximos da história que da literatura — e essa é uma segunda armadilha contra a qual você deve se prevenir. (É verdade que a própria história, mesmo a Grande História dos grandes historiadores, deve muito mais à literatura do que ela ousa admitir.) No entanto, meu caro, enquanto escreve, o biógrafo está a compor, mesmo que não queira, ou que não admita isso, mesmo que isso lhe repugne, um relato literário. Um romance no estilo do século 19, linear, com início/meio/fim, baseado nos dogmas clássicos da legibilidade, da regularidade, da nitidez psicológica, do apego à objetividade, da clareza.

Há um modelo pré-existente, o da biografia, que todo biógrafo, com seu trabalho de pesquisa, garimpagem e depois de redação, tenta preencher — como um cozinheiro que, com a receita em punho, se concentrasse nos ingredientes, nos procedimentos, nos preceitos clássicos de um assado, ou de um bolo. Um cozinheiro que tentasse cumprir, à risca, a receita que lhe foi encomendada, sem nada esquecer, sem quebrar o ritmo e a ordem das coisas, sem falhar. E como triste é lidar com as coisas que não podem falhar — basta ver o pavor estampado na face dos goleiros na hora da cobrança dos pênaltis.

Ao contrário da ficção e da poesia, territórios da liberdade interior, a biografia (assim como a história) trabalha com normas (isto é, com o permitido e o proibido), com pré-requisitos (isto é, preconceitos), com dogmas (isto é, com clichês). Todo biógrafo, enquanto escreve, tem sempre dentro de si um poderoso juiz a lhe vigiar os passos, a lhe dizer o que falta, o que está impreciso, o que deve ser esclarecido ou detalhado em minúcias, o que deve ser simplesmente cortado por vir só contaminar o relato com a obscuridade ou a imprecisão. (O biógrafo age como esses vigias das grandes indústrias, que passam em revistas as diversas peças de montagem, em busca de imperfeições, irregularidades, deformações. Estes pobres homens que contam parafusos, cantoneiras, botões, assoberbados pelo amor à perfeição).

Ao fim, uma biografia deve ser coerente, deve “fazer sentido” — ainda que nos casos das vidas múltiplas e dispersas, como a de Vinicius de Moraes. Tudo caminha para um destino, há um objetivo a ser atingido, nada que é disperso ou difuso deve, ao fim, permanecer. E aqui, meu caro biógrafo de primeira viagem, eu me lembro das lições contrárias de um escritor como Tchekhov, para quem o ficcionista deve colocar problemas, mas jamais resolvê-los; seguindo seu raciocínio, posso dizer, ao contrário, que ao biógrafo clássico cabe a “solução” dos problemas — e com que dose de arbitrariedade, de arrogância, de petulância intelectual!

Preso aos eventos da verdade documental, à fala dos depoimentos, às entrevistas, correspondências, documentos judiciais, laudos médicos, anotações secretas, o biógrafo age como um policial que, de tempos em tempos, gritasse: “Todos em fila!” É o que o biógrafo grita para seus fatos, mesmo quando eles não combinam, mesmo quando são discrepantes, quando se contradizem (como acontece na maior parte das vezes): “Tratem de fazer um sentido, tratem de se completar, tratem de apontar a verdade!”, ele se esgoela. “E não me venham com contradições, ou com pensamentos incompletos!”, diz ainda. Que noção terrível de verdade, parecida com a inexorabilidade de uma sentença judicial, que cabe aos biógrafos exercer!

Não se iluda, meu jovem biógrafo: ao longo de sua tarefa, você topará com os limites, os obstáculos, as nebulosidades, os paradoxos próprios da condição do escritor. Bem, talvez assim, ao menos, você possa vir a entender que, para o escritor, nada é mais caro que a liberdade interior — mas a biografia, esta máquina de triturar vidas e de arrumá-las, de ordená-las, de clareá-las (como uma faxineira que, encontrando uma sala em desordem, se pusesse a limpar e limpar; ou um dentista que, diante de uma boca cheia de cáries, se pusesse a obturá-las), a biografia é, por excelência, o gênero da deformação, o que é muito diferente da liberdade — pois aos biógrafos cabe encontrar elos onde não existe elo algum; chegar a conclusões onde nada se conclui; encontrar continuidades onde tudo se perde num grande colapso.

Contudo, você, jovem biógrafo, não deve esquecer de que a promessa do mercado (aquela que, agora, se espera que você venha a cumprir) é a de que, quando alguém compra uma biografia, ali encontrará “toda” a vida do biografado, a cronologia inteira reconstituída sem furos, sem imprecisões, sem deslizes — esses defeitos fatais para uma biografia. Como se fosse possível viajar no tempo (pilotar uma máquina do tempo feita só de papel) e penetrar na memória de alguém — o que é uma comparação, na verdade, sem sentido, já que ninguém, nem o mais lúcido e sincero dos homens, tem clareza a respeito daquilo que viveu. Sim, meu jovem biógrafo, não acredite tampouco na sinceridade das autobiografias. Por mais bem intencionados que sejam seus autores, por mais crédulos, por mais sinceros que possam vir a ser, eles estarão sempre sujeitos aos rombos da memória, à ação corrosiva do inconsciente, aos lapsos, às mentiras que pregam a si mesmos sem sequer perceber isso, às fantasias que, sem que desejem isso, vão misturando aos fatos vividos, as interpretações, os eventos e para lhes colar as fissuras. E, no lugar dos fatos, teremos apenas, lamento dizer, uma ficção. E esta ficção, pobre biografado a tremer em seu túmulo, ocupará o lugar da verdade.

Você, jovem biógrafo, deve lembrar ainda que toda biografia, embora seja um texto literário, se baseia, primeiro, numa investigação. É um gênero, portanto, que se aproxima da investigação jornalística, e também da investigação policial. Mas existem aqui graves diferenças que sou obrigado a distinguir. O repórter e o policial lidam com o presente — o passado é só uma cauda que se arrasta na ponta desse presente, prometendo clareá-lo, ampliá-lo, esclarecê-lo. Enquanto isso, o biógrafo lida com o passado, e um passado morto, faz a autópsia de um morto; não para dissecar o corpo, para falar das vísceras, dos membros, das feridas, mas para reanimá-lo, trazê-lo outra vez à vida, ressuscitá-lo e lhe emprestar uma nitidez que, na verdade, ele nunca teve. (Nós, homens, somos sujeitos opacos; a vida é uma experiência caótica; nossa memória é, na maior parte do tempo, deformadora e turva.) E o que se espera é que essa vida escrita que o biógrafo oferece ao leitor seja muito mais precisa, direta, sem simulações, objetiva do que a vida real, a vida vivida pelo biografado. Pode haver, eu pergunto, atitude mais onipotente? Pode haver, também, verdade mais enganosa?

Além disso, jovem biógrafo, enquanto o jornalista e o policial, ainda que presos ao presente e à volatilidade do tempo, podem depois se corrigir (uma notícia, veiculada hoje, pode ser desmentida amanhã; de uma sentença, proferida hoje, se pode recorrer no dia seguinte), ao biógrafo resta o peso da palavra definitiva. Além disso, o jornalista tem seus limites dados pela repercussão, pelas contra-provas, pelos desmentidos; e o policial deve se ater às normas dos inquéritos, às provas materiais, à letra dos códigos penais. Hipótese, impressões, suposições, conjeturas, projeções, fantasias, em suas mãos (do repórter ou do policial) são apenas isso que os nomes dizem. Contudo, nas mãos do biógrafo de quem, num dado momento, se espera que redija essa vida completa, que a recrie, esses elementos ganham outro valor: são submetidos às leis da arbitrariedade e do definitivo.

Só um jornalista pode dar a notícia pela metade, à espera de que outros se esforcem para complementá-la ou desmenti-la; só a justiça pode pedir o arquivamento de um processo por falta de provas, ou rever uma sentença. Um biógrafo não pode dizer: “Esta é a vida de fulano até onde me foi dado ir”. Ou pedir, por falta de provas, o arquivamento de seu livro. Uma versão deve ser dada, bancada, fixada; o definitivo é um elemento do qual você não poderá se esquivar. Prepare-se, porque a aventura é bem mais pesada do que você pensa.

Apesar de tudo isso, meu caro, existem belas biografias que lemos com o mesmo prazer, e biógrafos sérios, que se projetam com seu trabalho dedicado e impecável. Não que tenham escapado da armadilha — apenas dela “se esquecem”, a deixam de lado, a ignoram. Não deixamos de cometer erros, contudo, porque os ignoramos; o melhor é examiná-los de frente, jamais perdê-los de vista, e é isso o que eu venho lhe propor agora.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho