Meditar é submeter-se a um exame interior. Escrever meditações, em conseqüência, é fazer, do interior, exterior. É uma torção ao avesso. Que o leitor, contudo, não espere de mim o devassamento das confissões. Confessar é, quase sempre, livrar-se do interior, vomitá-lo, expulsá-lo de si. A meditação, ao contrário, tem como método o resguardo e como sonho a discrição e a prudência. Poucos escritores trabalharam a primeira pessoa com mais desembaraço que Clarice Lispector; contudo, ao longo de seus romances e contos, não encontramos uma só linha de confissão. Clarice não estava interessada em desabafar, em expor suas aflições íntimas, em trocar confidências. Não escreveu para purgar-se, mas para fazer, do pensamento, uma coisa. Ela acreditava na coisa, ou no Isso, como dizia; escreveu na esperança de que, em suas palavras, o Isso — e não mais as imagens luminosas do Eu — viesse a se manifestar. É inquietante que hoje, mais de 20 anos depois de sua morte, seus livros sejam usados para leituras esotéricas, ou de baixa filosofia. Eles são coisa bem mais séria. Ouvi-la falar, nas raras entrevistas gravadas que nos deixou, é defrontar-se com a vida que pulsa nas palavras. É encontrar a palavra viva, água viva, e não esse falatório morto que hoje enche páginas e páginas. Ir na direção contrária daqueles “exercícios espirituais” que, na infância, aprendi com os jesuítas e que só levavam à autotortura e à auto-recriminação. Neles, o pensamento existia como instrumento de castigo. Ao meditar, o transformamos, em vez disso, em instrumento de dispersão, mas também de expansão.
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Witold Gombrowicz, o escritor polonês que se refugiou em Buenos Aires, escreveu em seus Diários: “Meu método consiste no seguinte: colocar em evidência minha luta com os homens por minha própria personalidade e aproveitar todos os conflitos pessoais que surgem entre eu e eles para definir cada vez mais claramente meu próprio Eu”.
Mas, logo a seguir, procurando encontrar seu lugar em meio ao pensamento “agudo e incandescente” da segunda metade do século, escreveu também: “Eu sou um pensamento não agudo, sou um ser de temperaturas médias, um espírito em estado de certo relaxamento… Sou o que descarrega as tensões. Sou como a aspirina, que, se podemos acreditar na publicidade, elimina as contradições excessivas”.
Abrir espaço para esse Eu que busca conhecimento e suavidade é, talvez, uma maneira de definir a meditação. Ela exige intensidade, concentração, reflexão; é um exercício intelectual, ainda que desprovido de regras. O que a distingue, contudo, é o desejo secreto de, pensando, delinear a sombra de um Eu. Ler o outro, ouvir o outro, é um pouco se ler e se ouvir. É assim, percorrendo essas mediações — que Gombrowicz chamava de “temperaturas médias” — que se pode, talvez, chegar a algo.
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Penso num famoso ensaio de Paulo Auster, sobre a poeta Laura Riding, “Verdade, beleza e silêncio”. Para Laura, a poesia está diretamente relacionada com a verdade. Não com a revelação de uma verdade impessoal mas, em vez disso, em um encontro pessoal com a verdade. “Há muita coisa que não somos./ Há muita coisa que não é./ Há muita coisa que não temos que ser”, Laura escreveu. Antes disso, dizia: “Temos que aprender melhor/ O que somos e o que não somos”. Para escrever e ser verdadeiro, o poeta deve descobrir, antes de tudo, quem, ou o que, ele não é. Não somos o vento, que muda de direção a cada instante, ela diz; ao contrário, somos o que não muda. Laura acreditava que, se o que um escritor escreve for verdadeiro, não o será pelo que ele é como escritor, mas pelo que é como ser. A questão não é confessar-se, mas delimitar-se. É poder dizer: estou aqui, e não ali. Escrever poesia se assemelha, assim, a catar feijões. Isso presta, aquilo não presta; isso interessa, aquilo é inútil. É nesse exercício entre o desprezar e o acolher que um poeta se faz.
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Versos de um jovem poeta brasileiro, Pedro Amaral, no poema O jejuador, não me saem da mente. O poema está no livro Breve encontro, recém lançado, e trata dos desiludidos que não querem mais ouvir falar da poesia, que a renegam porque não desejam estar “entre os boçais/ que verborrageiam nos jornais”. É uma pretensão irreal, que desconsidera a esfera que trabalha no escritor à sua própria revelia, aquilo que o submete (Pessoa dizia: que é instinto, e não vontade). E Pedro flagra esse Isso em cinco versos inesquecíveis: “Talvez/ Por não pretender, não percebia/ Que sua descontente liturgia/ Era espécie de purificação/ Era preparação para a poesia”.
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Numa palestra proferida durante o colóquio Opiniões Contundentes, realizado recentemente em Madri, o escritor espanhol Javier Marías declara que há, hoje, uma saturação de ficções. Acrescenta, fatigado, que, em conseqüência, é muito difícil para um escritor encontrar histórias que já não estejam contadas. A literatura teria chegado a seu ponto de saturação, quando as soluções atingem a expansão máxima e as novidades se esgotam. Ocorre (e eis onde Marías se engana) que a literatura não é um conjunto de soluções, mas sim de perguntas, sendo sua capacidade de expansão, mesmo sob condições de adversidade extrema, ilimitada. Além disso, repetir-se, ele também se equivoca, não é um sinônimo de fracassar. A raça humana, que se reproduz há milênios em homens e mulheres aparentemente iguais, é suficiente como demonstração do quanto pode haver (e há) de diversidade na semelhança. Infelizmente ainda não nos livramos das pregações da vanguarda e de sua compulsão pelo novo, por qualquer novo. Quantas vezes um caminho retomado e retomado leva bem mais longe…
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O homem comum pensa que o escritor é aquele que vive “no mundo da lua”. Menos ingênuos, mas igualmente iludidos, os escritores realistas julgam que é preciso reaproximar a literatura da realidade — como se a literatura pudesse existir fora dela. Penso em Ricardo Piglia, o escritor argentino, para quem o escritor é aquele que vacila entre a realidade e a ficção. “A literatura é uma maneira de não se decidir entre a realidade e a ficção”, ele diz. Para Piglia, um romance é interessante quando o leitor sabe que ele é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso. “Se fosse somente verdadeiro, ou falso, não produziria o mesmo efeito”. São muitas as incompreensões a respeito desse vínculo entre a literatura (a arte) e a realidade (a vida). É como um cobertor curto, que ora é puxado para cima, ora para baixo, sempre na esperança de encontrar a posição correta, capaz de tudo encobrir. Só que essa posição correta não existe, já que a verdade para a literatura (e não só para ela) reside na incerteza.
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O filme Janela da alma, de Walter Carvalho e João Jardim, uma jóia perdida entre tantas banalidades, me faz lembrar de alguém muito distante, mas que está também muito próximo: Tiziano. Foi talvez o primeiro artista a lutar contra a idéia de que a visão é a clareza absoluta e, em conseqüência, a cegueira, a escuridão absoluta. Para dar expressão a essa descoberta, Tiziano formulou a técnica do claro/escuro. Nós vemos, mas não vemos — e isso não é o mesmo que dizer que “ora vemos, ora não”. Isso é dizer exatamente isso: quando vemos um objeto, no mesmo momento, e para que isso seja possível, não vemos outros. Logo há uma positividade no escuro: em vez de nos impedir de ver, a escuridão nos ajuda a ver. O olhar, então, não passa do encontro de uma afinação (como a de um músico que afina seu violino). Em conseqüência, o escuro, a cegueira, não podem ser estáticos mas guardam, ao contrário, seus movimentos e vibrações. Nunca se vê completamente; não ver é, ainda, uma maneira de ver.
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Ocorre-me uma frase de Joan Miró: “Nunca sonho à noite”. Um artista não precisa da noite, ou do recolhimento, ou do afrouxamento das defesas, para sonhar. Ao contrário, ele sonha acordado, sonha disperso em sua vida mundana, sonha se defendendo, e é desse conflito, da capacidade de manejá-lo e da amplitude que consegue lhe emprestar, que vêm sua grandeza ou pequenez. Se bem que essas classificações por extensão também sejam inúteis: cada escritor tem o tamanho que tem, e tanto mais verdadeiro será quanto souber aceitar aquilo que lhe pertence e, ainda e sobretudo, descartar aquilo que não lhe cabe. Toda arte começa por um grande não.