Teoria do riso

O riso e o humor são, em geral, tratados com desdém pelos intelectuais e assemelhados
Ilustração: FP Rodrigues
27/05/2019

Ainda agarrado, sem conseguir largá-lo, a O adolescente, penúltimo romance de Fiodor Dostoievski, publicado em 1875, detenho-me na página 372 da tradução de Paulo Bezerra para a Editora 34. Justo no momento em que Arkadi Makárovitch, o protagonista, desenvolve uma surpreendente e afiada, embora perturbadora, Teoria do Riso. É nela que, hoje, quero me fixar. O riso e o humor são, em geral, tratados com desdém pelos intelectuais e assemelhados, que têm o mau hábito de confiná-los — como vícios inconvenientes e desprezíveis — no campo dos “divertimentos”, ou das “bobagens”. Mas não: o riso guarda uma potência que não se pode desprezar. Ela se engrandece em tempos cinzentos, quando o riso, o sorriso, a gargalhada se oferecem, entre a rispidez e a boçalidade, como um jato de luz.

O riso é, quase sempre, ligado à leveza e à descontração, mas Arkadi, erguendo-se do fundo de sua adolescência, contraria esse consenso simplista. “Penso que quando um homem ri, na maioria das vezes repugna contemplá-lo”, afirma, sem vacilar. O protagonista de Dostoievski está no quarto de seu falso pai, Makar Ivánovithc, ali onde o velho, com uma doença fatal, e apesar de levar uma vida errante, recebe os cuidados extremos da mulher, a mãe de Arkadi. O próprio adolescente — depois de uma situação escandalosa em um salão de jogos e de, em fuga alucinada, passar uma noite exposto à neve — também convalesce. “É no riso das pessoas que com maior frequência se revela algo vulgar, algo que parece humilhar quem vê, embora quem ri quase sempre ignore a impressão que produz.”

O riso, Arkadi nos diz, desconhece o espelho. Se ele é espontâneo, é também traiçoeiro — revela aquilo que menos esperamos e que menos desejamos. Assim como ignoramos nosso semblante durante o riso, também não o conhecemos quando estamos dormindo, ele compara. “Quero apenas dizer que quem ri, assim como quem dorme, o mais das vezes não sabe com que cara fica.” Quando é natural e não estudado, quando não é falso, o riso expõe nosso flagrante descontrole sobre nosso próprio ser. Ali, na risada, na gargalhada, se desmascaram nossa arrogância e nossa pose, e sob elas uma face mais verdadeira, ainda que com frequência desagradável, toma corpo. O riso, quando é autêntico, retalha e rompe nossos disfarces. “Há pessoas que são totalmente traídas pelo riso e, de uma hora para a outra, a gente fica sabendo de todos os seus podres.”

Medita o inquieto Arkadi que o riso exige, antes de tudo, franqueza, “mas onde encontrar franqueza nas pessoas?”. Basta pensar, hoje em dia, no riso forçado e até vergonhoso das selfies que, logo após o click, se desfigura em enfado, cansaço, ou até raiva. No riso compulsivo dos programas humorísticos, quase sempre regido por uma gargalhada automática que vem supostamente das plateias e que faz existir o que simplesmente não existe. Nem penso só no riso, mas também no sorriso — que expressa alegria e amabilidade —, coisas que andam em baixa nesses nossos tempos grosseiros. Mas volto a Arkadi para não me perder. Ele mesmo se pergunta: “O riso franco e sem maldade é alegria, mas onde encontrar alegria nas pessoas em nossa época?”. Não custa lembrar que a ação do romance transcorre no século 19; logo as coisas não mudaram muito desde então.

Chega Arkadi, enfim, e de modo inevitável, ao tema da alegria. “A alegria no homem é o traço que mais o revela, e por inteiro”, ele diz. Talvez por isso vivamos em um mundo de tantas poses, de tantas e deploráveis “caras e bocas”. Uma das vantagens da alegria, ele medita, é o fato de ela ser reveladora. A alegria arranca a máscara da seriedade e da pompa, deixando exposto — por vezes de modo aterrorizante — nosso rosto real. “Se você quiser estudar um homem e conhecer sua alma, não se aprofunde na maneira como ele cala, ou como fala, ou como chora, (…); perscrute-o melhor quando ele ri”, aconselha. No riso solto, nossas defesas se desmancham, ficamos desarmados, somos desnudados, e então a verdade se torna mais escandalosa e espantosa. Rir, para Arkadi, pode se transformar em uma ameaça pessoal. “Se notar o mínimo traço de tolice em seu riso, significa que na certa esse homem tem uma inteligência limitada, ainda que não faça outra coisa senão esbanjar ideias.”

Depois de meditar sobre o riso, Arkadi trata, imediatamente, de se justificar com o leitor. Sabe que essa longa meditação sobre a máscara quebra o tom da narrativa, que nela se imiscui em um terreno que não é de seu domínio, que se arrisca e talvez até, apesar de deliciar, também aborreça quem o lê. “É de modo deliberado que incluo aqui esta longa tirada sobre o riso, inclusive sacrificando o fluxo da narração, pois a considero uma de minhas mais sérias conclusões sobre a vida.” O leitor deve descontar aqui a vaidade, e também a arrogância juvenil, do protagonista, que tem um espírito conturbado e oscilante, e que frequentemente chega a extremos dos quais, logo em seguida, se arrepende. Em seu estilo de narrar, predomina uma grande inconstância, uma volubilidade realmente enervante, mas é delas, também, que Dostoievski desentranha a força de seu personagem.

Para encerrar sua meditação, Arkadi sugere aos leitores que pensem, em particular, nas crianças. “Observem uma criança: umas crianças sabem rir com perfeição, por isso são sedutoras.” Predomina aqui a ideia de que o crescimento, e também a vida, maculam e degradam o espírito. “Uma criança chorona é repugnante para mim”, ele ressalva, “mas a que ri e se alegra é um raio do paraíso, uma revelação do futuro, de quando o homem enfim se tornará puro e cândido”. Vemos aqui, claramente, que para Arkadi — e talvez para Dostoievski — o riso se associa à candura, à falta de malícia, e que ele é, assim, e, portanto, uma expressão viva de certo ideal de homem não contaminado pelas alternâncias da existência. Arkadi vê, por fim, algo de infantil, que o encanta, na face de seu falso pai, Makár, com quem passará a dialogar na parte seguinte do livro. Toda a Teoria do Riso, enfim, e agora se vê, é uma espécie de intróito para destacar e iluminar a figura do pai. Mas isso já é outra e longa conversa.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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