Dou um salto de volta ao passado. No ano de 1978 — eu era um jovem repórter de 27 anos —, o doce Alfredo Schleumer, meu chefe de reportagem no Diário de Notícias, me pediu uma entrevista com Raul Bopp, um importante, mas já esquecido, poeta modernista. A pauta indicava, apenas, um número de telefone, nada além disso. Naquela época — como ainda hoje, admito logo — eu não conhecia muito bem a obra de Bopp. Uma voz roufenha, com pausas alarmantes e chiados que eu não sabia a que atribuir, se à idade avançada, ou à qualidade da ligação, agendou um encontro, em uma livraria do centro do Rio de Janeiro para duas ou três horas depois.
Mas quem era Raul Bopp? Eu lembrava, vagamente, dos laços que ligavam sua poesia ao modernismo e ao movimento antropofágico. Era muito pouco para uma entrevista, eu sabia disso. No departamento de pesquisa do jornal, encontrei precárias referências ao escritor gaúcho, que nasceu no fecho do século 19, atravessou o século 20 e que viria a falecer seis anos depois. E lá fui eu, inseguro, levando comigo toda a minha ignorância, além de meia dúzia de referências vagas. E daquilo eu tinha que produzir um artigo, simples efeméride, como chamamos, nas redações, os aniversários e as datas a celebrar.
Em minhas breves anotações, nada mais que rabiscos, havia uma referência ao Cobra Norato, poema capital do modernismo, em que Bopp trabalha com as lendas e mitos da Amazônia, e que eu nunca tinha lido. Hoje — em 2019, quando a Amazônia pega fogo — me pergunto: não terá chegado a hora de enfim ler? Como quase sempre acontece no jornalismo, não havia tempo para procurar o livro e, mesmo que houvesse, numa década dominada pela poesia concreta, provavelmente eu não conseguiria comprá-lo.
Então me enchi de coragem e, agarrado a minha pauta, fui assim mesmo a seu encontro. Um senhor baixinho e curvo, descabelado, de aparência débil, me esperava entre as estantes da livraria. “Boa tarde”, se limitou a dizer, com uma voz ainda mais hesitante do que aquela que me atendera ao telefone. Com grandes dificuldades, apoiando-se em um banquinho, continuou a fuçar as prateleiras mais baixas, e se esqueceu de mim. Esperei. Nas comemorações, espera-se que o repórter passe em revista a vida do homenageado, sua obra, suas conquistas, suas decepções. Mas como vasculhar a bagagem de um homem que, para mim, continuava trancada?
Bopp foi muito paciente comigo. Depois de encontrar o livro que procurava, sentou-se, suspirou e disse: “Vamos lá, o que você quer mesmo?”. Expliquei, trêmulo, que o jornal esperava que eu escrevesse um artigo que lhe servisse de homenagem. Mas, admiti, eu me sentia completamente despreparado para isso e, na verdade, não sabia por onde começar. Um entrevistado mais impaciente teria se erguido e me dito: “Então mande seu chefe enviar um repórter preparado”. Destoando da imagem do “grande poeta” solene, Bopp, ao contrário, me propôs: “Nesse caso, vamos começar pelo princípio”. Ele me falou de sua vida e de sua poesia, como se me desse uma aula. Levei um gravador e, apesar da passagem do tempo, em um velho K-7, alguma coisa ainda hoje consigo ouvir de sua fala.
Uma hora depois, saí da livraria com uma fita gravada, um grande carinho por aquele velho poeta, um desejo imenso de ler Cobra Norato (o que logo que pude tentei fazer, com grandes dificuldades) e uma pergunta: “Por que me meti a fazer jornalismo cultural?”. Pergunta que, se nunca consegui responder, a partir daí nunca mais me saiu da cabeça. Pergunta que, como um troféu, não abandono mais. Por que, se desejam se dedicar à literatura, ou às artes, por que tantos rapazes e moças acabam se voltando, em vez disso, para o jornalismo cultural? Era o meu caso. Desde os dez ou onze anos, quando descobri a poesia de Vinicius de Moraes, meu primeiro poeta, e depois, quando cheguei à prosa de Daniel Defoe, Albert Camus e Franz Kafka, meus primeiros prosadores favoritos, eu sabia que queria me tornar escritor.
Por quê, então, o jornalismo? Necessidade de dinheiro imediato, timidez, baixo amor próprio… É uma pergunta inesgotável, como são todas as grandes perguntas, que sempre exigem grandes respostas, respostas incompletas, às vezes até contraditórias, e que, no entanto, fazem um jornalista avançar. Uma pergunta até hoje incômoda, já que, passados mais de 40 anos e com muitos livros publicados, ainda não tenho certeza da resposta.
Nos primeiros anos de repórter, tive um chefe que, sempre que se irritava comigo, me dizia. “Por quê, em vez de ir direto para a literatura, você veio para uma redação?”. Sempre que me via com um romance, ou um livro de poemas nas mãos, o que era quase sempre, debochava muito de mim. Não, ele dizia, talvez o jornalismo não fosse para mim. Meu chefe acreditava que, porque eu me envolvia demais com meu objeto de trabalho, meu trabalho de repórter se deformava. Perturba esses chefes pragmáticos, muitas vezes, que seus repórteres tenham uma relação sentimental e apaixonada com o assunto de que tratam. Que não o vejam, antes de tudo, como objeto frio de investigação. Que se envolvam com o que fazem, perdendo assim a objetividade que a imprensa tanto cultua.
Creio, ao contrário, que essa primazia da paixão não só não é um defeito, ou um obstáculo, mas é condição essencial para a formação de um competente jornalista cultural. Para a formação de qualquer jornalista. Sem esse vínculo afetivo, um repórter cultural não se forma. Penso até hoje, e cada vez mais, que o jornalismo só pode ser entendido, só faz sentido, se o vemos com uma aventura. Uma viagem através do desconhecido e, sobretudo, do Outro. Isso é coisa que não se faz friamente. As emoções estão em jogo todo o tempo. O próprio repórter se coloca em risco.
Entrevistando poetas como Raul Bopp, aprendi que, se praticado só com pragmatismo e objetividade, o jornalismo não passa de uma máquina que fatia e regula a realidade. O jornalismo distante e raivoso, cheio de ódio, que hoje tantos praticam com abnegação, comprova isso. Há uma palavra estranha talvez, mas precisa, que define, talvez, o que lhe falta: delicadeza. Sem sutileza e paciência, não conseguimos nos aproximar da verdade.