A recém-lançada antologia de contos de Marcelo Moutinho, A palavra ausente, apresenta flagrantes sutis do cotidiano, girando ao redor da temática das perdas existenciais, em que, como afirma o próprio autor, os personagens carregam uma “tristeza benigna, poética”, “a beleza das coisas levemente tristes, num tempo de ditadura da alegria”.
De fato, o constrangimento que acomete o filho adulto que dá banho no pai doente; a frustração do menino que sofre por desapontar o pai numa partida de futebol de campo; o vazio que invade o autor de mensagens padronizadas de cartões artificiais de Natal que, em verdade, nada dizem; ou o susto da menina que, subitamente, perde a inocência ao se deparar com a grave doença de sua querida madrinha revelam, no todo, uma espécie de melancolia, em que o desespero jamais se explicita ou transborda.
É exatamente dessa gestualidade contida e velada que se nutre a força do narrar de Moutinho. Trata-se de uma escrita que investe nas amplas possibilidades do não-dito, da entrelinha, da latência que pulsa como resíduo subjacente a todas as coisas, das lacunas da existência, feita de silêncios e vazios.
A palavra que não quer nomear, que não quer dar conta de tudo, é eleita como a que o autor persegue, obstinadamente, na precisa construção de uma verdadeira poética da ausência, em que a concisão e a economia de recursos procedimentais da narrativa dão o tom.
Transfigura-se poeticamente a dor e as pequenas mortes do cotidiano, das situações corriqueiras em que as perdas se acumulam, mas não se corre o risco de extrapolar as tendências exageradas do melodrama fácil, tampouco, no extremo oposto, o da total aridez do sem sentido niilista.
A construção da ausência empreitada pelo autor parece encontrar seu ponto de apoio na dimensão dialética do que se materializa pela incompletude, plenamente traduzível pela forte presença do que falta, pelas marcas, símbolos, ícones do que se perde, pelo subentendido, pela sombra do que não se concretiza, nem vem a ser.
Contenção
No belíssimo conto Água, que abre o livro, a precisão, a contenção de elementos sobre os personagens informa pouquíssimo, o estritamente necessário para que se perceba que o que se apresenta é a situação de um filho dando banho no pai doente. Eles são anônimos, não há nenhum detalhe a mais, o circunstante é dispensado. É pelo viés do foco detalhado na cena do banho que se delineiam os traços de um narrar que tangencia o impressionismo, carregado das lacunas e ausências, mestras da sugestão:
Ele entrou no banheiro completamente nu, em um silêncio áspero. Apenas a toalha vermelha pesava sobre os ombros, dando algum colorido às costas envergadas. Conduzi-o até o boxe, procurando firmar a lenta caminhada em passos estáveis.
Ampará-lo.
Não havia espaço para nós dois. Fiquei do lado de fora; ele, no de dentro. Foi preciso deixar a cortina aberta, mas fiz questão de fechar a porta do banheiro, embora não houvesse mais ninguém no apartamento.
Os azulejos do banheiro suavam, ele mal me olhava. Mantinha a cabeça inclinada para baixo, a nuca parecendo maior, e eu tentando reverberar seu constrangimento em palavras singelas […]
Ele plantou as mãos — imóveis — sobre a parede, como se estivesse sob séria ameaça, como se eu lhe apontasse um revólver, uma faca, algo assim. A cortina, inquieta, tocou meu rosto. Insistia em fechar, ainda que eu a arrastasse cada vez que se soltava e corria no trilho.
Insistia em fechar.
Guiada por mim, a toalha passeou: cabeça, pescoço, tronco, braços, pernas, pé. A toalha molhada explorava o corpo, sugava o suor e a sujeira, acarinhava.
E ele permanecia imóvel, embora as mãos não pudessem deter o tremelique. Não era por causa do frio, e nós dois sabíamos. Eu esfregando a toalha, ele com os olhos cerrados num breu misterioso. Talvez, no fundo de si, lembrasse: “Um dia, há muito tempo, dei banho neste menino” […]
Talvez pudéssemos resumir a cena toda na delicada tentativa do filho em “amparar” o pai. Um único verbo e a força de tudo que nele se concentra, que aí está, sem que se precise acrescentar mais nada. Além disso, há o que “os dois sabiam” e que não precisa ser nomeado. Observamos assim, o efeito obtido por meio da densidade da sugestão do que se confirma pelo não revelado, por uma omissão de palavras que, provavelmente, se usadas nesse contexto, diluir-se-iam ou escorreriam em vão, como a água que escorre durante aquele banho, “do qual não há como se sair limpo…”.
Conto de formação
Ainda envolvendo a relação pai-filho, em Jogo-contra, subdivido em Primeiro jogo, Revanche e Melhor de três, percebemos a travessia de crescimento do narrador-menino que a princípio quer brindar o pai com a vitória de seu time no campinho de futebol de um bairro de subúrbio. Nessas três fases muito sucintas de um simples jogo, vislumbra-se um quê do processo de formação do protagonista, que parte da idealização: “só pensava em chegar em casa e contar: — Pai, fiz o gol. O gol da vitória, pai.”; passa pela derrota: “ainda não sabia, então, que a tragédia se disfarça, ardilosa, é no interior do otimismo” e chega à fase da maturação, que inevitavelmente, explicita-se pela dolorosa constatação de alguma perda:
— Você está maior, filho. Quase do meu tamanho — ele interrompeu a caminhada.
Eu não achava. Minha altura parecia a mesma. Pude sentir, porém, que algo de fato mudara em mim, embora não soubesse definir exatamente o quê. Algo que mais tarde, já sob a sombra de um corpo de homem, ganhou absoluta limpidez: na imagem baça daquele vidro, o pai começara irremediavelmente a desaparecer.
Na esteira da ausência
As perdas que se referem ao fim de relacionamentos amorosos — seja pela morte ou pela separação —, no momento em que agonizam, apelam a símbolos, ícones, objetos que evocam a presença do ente querido como tênues fios que insistem em sustentar o imenso peso da memória do outro que, afinal, esvanece. É o que notamos, por exemplo, neste trecho de Para ver as meninas (título inspirado em canção de Paulinho da Viola):
Pouco a pouco, a imagem de Luiza se desintegrou, sem que eu sentisse. Não foi uma navalhada. Não. No decorrer dos dias, a face dela desfez-se nos pontos de uma pintura impressionista e, nas raras ocasiões em que nos esbarrávamos por aí — amigos em comum, aniversários, casamentos — dois beijos na bochecha e um boa-noite resolviam tudo.
Analogamente, no conto Cavalos-marinhos (que remete à canção Vento no litoral de Renato Russo), o vazio da separação do casal de amantes se instaura ao redor de caixas que se amontoam na sala do apartamento, indicando a mudança e a saída de um deles, após a separação. É a marca da ausência dos objetos, roupas, móveis que antes preenchiam espaços — e que no momento da narrativa passam a ser encaixotados e embalados — que revelam o não-dito. É também o presente mais significativo que um deles dera ao outro (um cavalo-marinho) que, sendo deslocado do lugar onde sempre estivera guardado, preenchendo um determinado espaço, para ser jogado ao mar, acabará sinalizando mais uma das potentes marcas da ausência, que vai sendo construída ao longo da narrativa:
Agora é descer todas aquelas caixas, carregá-las comigo. “Minha máquina da lembrança” — ao recordar a frase, esboço o sorriso possível. Levo as mãos até o mar e devagar, bem devagar, solto o cavalo-marinho, que começa a deslizar sobre as ondas salgadas, dançando no ritmo intenso da maré, distanciando-se da margem, ficando cada vez menor.
Simplesmente indo, indo, indo.
Em todas as situações, e conforme afirma um de seus personagens, neste A palavra ausente, Moutinho escreve como quem tenta “aprender a respirar no vácuo da ausência que ficou”.
Ode à poesia
O último conto é uma homenagem à poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner, e aqui é inevitável não lembrar do filme O carteiro e o poeta (Il postino – 1994), dirigido por Michael Radford, baseado no livro Ardiente paciencia, de Antonio Skármeta, sobre a amizade entre o poeta chileno Pablo Neruda e um humilde carteiro que deseja aprender a fazer poesia. Também no conto Dona Sophia, dá-se a aproximação da famosa poeta com uma simples camareira do hotel, no Amazonas, em que Sophia se hospeda, e que narra a história.
Nesse conto — diferentemente dos demais que compõem a antologia — temos uma verdadeira ode à poesia enquanto revelação epifânica do autêntico, em que as diferenças sociais são minimizadas, território livre onde todos têm voz, assim como vem a provar a moça que recebe, de presente, um livro da poeta e se põe, também, livremente a poetar:
E rio é diferente, é água doce. Rio eu já vi. No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde menina. Negro, Solimões, Amazonas. Rio para mim é travessia de barco. Lugar de pescar piranha, pirarucu. Ou de tomar banho. Rio é a mãe chamando a gente para o almoço, é o pai entrando na canoa para ir trabalhar, é brincadeira de briga de galo, é gosto-azedo de cupuaçu.
Antes de ler o livro da Dona Sophia eu nunca tinha pensado nisso, não. Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes mais limpo, às vezes mais sujo, mas só ele mesmo, o rio.
E confesso que da primeira vez que li o livro não consegui entender muito bem as coisas que ela escreveu sobre o mar. Acho que para a gente sentir tem que ter encostado na coisa, cheirado, pelo menos visto de perto.
Assim, seja pela minuciosa construção da tristeza benigna, tão necessária em tempos de efusiva e forjada alegria, seja pela precisão com que constrói e materializa a ausência, que passa a ser palpável em seus textos, Marcelo Moutinho, sem ceder a certas tendências contemporâneas, notadamente marcadas por excessos e reflexões muitas vezes tautológicas sobre a literatura e a arte, impõe-se pela autenticidade do poético que sabe, acima de tudo, ser denso, delicado e contido.