🔓 Ao sul da condição humana

Em "O antigo futuro", Luiz Ruffato reconta parte da história brasileira a partir das vidas dos seus personagens
Ilustração: Luiz Ruffato por Fabio Abreu
01/01/2023

“Que saudade do futuro”, confessou o mineiro Murilo Mendes no poema Mundo estrangeiro. E é a partir deste sentimento, ou seja, da constatação de que uma longa espera, esperança, se fez irremediavelmente frustrada, ou melhor, é justo a partir da dor da descoberta de que aquilo que foi tão desejado jamais acontecerá, não importa o que se faça para tanto, que Luiz Ruffato, também um escritor mineiro, tece as linhas do romance O antigo futuro. Se o Brasil, em algum momento, foi conhecido como um país rico e diverso, que prometia um horizonte acolhedor e próspero para os que o escolhiam habitar, Ruffato faz questão de desmistificar tal discurso, deixando claro que grande parcela dessa narrativa não passou de uma ficção construída a partir do sacrifício e sofrimento de toda uma geração de pessoas pobres.

Assim, logo no início da trama, somos apresentados à família Bortoletto, através dos flashbacks de Alex, um de seus membros. Descendentes de italianos, os Bortoletto vivem em São Paulo, num prédio erguido por eles mesmos, na Casa Verde, bairro popular da Zona Norte paulistana. E é rememorando seu passado, nos breves momentos em que o duro presente lhe dá alguma trégua, que Alex nos conta a sua história. Vítima de um trauma profundo, ele é obrigado a deixar o Brasil e partir para Somerville, nos Estados Unidos, com o objetivo de recomeçar a vida e assegurar a sobrevivência dos parentes.

Deste modo, subsistindo como todo imigrante de origem simples, ou seja, submetido a longas jornadas de trabalho, economizando cada centavo e encontrando dificuldades para construir relações de afeto, num país com cultura e língua muito diferentes das que ele conhece, progressivamente, passamos a compreender a imensa dor que tal personagem carrega, bem como o inevitável componente socioestrutural dela. Entre o silêncio penoso derivado da ausência de sua mãe e o amor profundo, mas sem intimidade, que Alex devota ao Pai e aos dois irmãos, parece impossível não se comover com sua trajetória. Ponto para Ruffato, que nos faz mergulhar nos sonhos, lutas e desesperos da classe média baixa brasileira de meados do século 20, sem resvalar em qualquer sentimentalismo ou condescendência infantilizante.

A profunda pesquisa histórica e a escolha por uma linguagem que tanto fala sobre os personagens quanto é claramente pronunciada por eles e pelo mundo que os cerca também merece elogios. Neste livro, estética e ética se confundem, impedindo que as escolhas das palavras se tornem performances vazias. Se no romance Estive em Lisboa e lembrei de você Ruffato já havia discutido as dificuldades de ser imigrante, existem tantas diferenças entre estes seus livros que quase esquecemos que ambos perpassam o mesmo tema. Em O antigo futuro, toda uma nova dimensão do assunto se apresenta e isso se dá justo por conta das paisagens íntimas que o autor optou por nos revelar. Ao contrário de o Estive em Lisboa…, nesse seu último romance, quase nenhum espaço resta para qualquer desenvolvimento cômico. Mesmo Tio Gilberto e suas “loucuradas”, personagem que promove o contraponto necessário para a pouco lúdica realidade dos meninos Bortoletto, é alguém que guarda seus impronunciáveis. Ruffato consegue o grande feito de pintar um belo e vívido mosaico humano, sem recorrer a expedientes simplificadores ou maniqueísmos que até poderiam tornar seu romance mais palatável para um grande público sedento por uma literatura panfletária, mas que comprometeriam a qualidade artística do seu texto.

Sem soluções fáceis
Antes de tudo, o autor busca nos mostrar que o respeito é sempre o afeto mais importante que devemos ter por aqueles imaginados por sua caneta. E isso passa por não menosprezar ou supervalorizar seus personagens apenas por conta de suas condições materiais. Portanto, o que encontramos neste romance não são soluções fáceis ou dedos apontados para nenhum espantalho, pois ainda que enfrentem dificuldades semelhantes e compartilhem referências, as figuras que Ruffato nos apresenta são complexas e dotadas da inteira gama de sentimentos que compõe a condição humana. Universal em suas particularidades, O antigo futuro não parece desejar oferecer ao leitor qualquer promessa ou afago, mas sua leitura, ainda que densa, revela-se surpreendentemente fluida e prazerosa. Assim, para além da importante dimensão política da narrativa, destaca-se, especialmente, a maestria com a qual o autor desenvolve as subtramas e os conflitos íntimos daqueles que povoam suas páginas.

Se são múltiplos e singulares os personagens desta obra, podemos também destacar o modo escolhido por Ruffato para lhes dar vida. Dividido em cem breves capítulos, O antigo futuro se ancora na vertigem como estratégia de compreensão daquilo que está no nosso entorno e que insistimos em nomear de realidade, apesar da grande parcela do que dela nos escapa. Também não passa despercebida a intenção do autor em nos fazer assumir certas responsabilidades, diante de um passado que, se num primeiro momento se apresentou como farsa, se tornará tragédia certa em qualquer futuro próximo. Sem determinismos ou adesões cegas, Ruffato nos recorda lições importantes de um certo filósofo alemão.

Desse modo, os destinos tristes dos integrantes da última geração dos Bortoletto, trabalhadores urbanos como tantos outros, talvez não devam ser mesmo colocados apenas na conta do acaso. É provável que Deus somente exista quando certas linhas permanecem sem serem cruzadas. Sim, é fato que para todos existem paraísos e infernos, mas pouquíssimos são os que ocupam a condição de eleitos perpétuos do céu/olimpo deste nosso país marcado por tanto descaso.

Aliás, não é à toa que, no mapa de Ruffato, Cataguases e a Itália são sempre lugares contíguos, vizinhos. E que, em seu relógio, o verão pode até tardar, mas as relações familiares são marco zero de quase todas as suas narrativas. Também não soa aleatória a opção do autor em numerar seus capítulos do fim para o início, assim como a de nomear o último deles de O futuro. Afinal, é dos silêncios dos desesperançados e, eventualmente, ressentidos, que se compõe este trabalho. Tampouco é gratuita a dedicatória para seus descendentes e antepassados. Se no início do romance encontramos expressões em inglês, língua hoje dominante, nos capítulos seguintes, ou seja, no futuro passado, o italiano era que dava as cartas, procedimento estilístico que traduz perfeitamente as transformações geopolíticas que sustentam nosso cotidiano. Ressalto tais alicerces do texto porque jamais acreditei que, no exercício literário, é possível segregar, de fato, forma de conteúdo.

Solidão e memória
Tais elementos se fazem tão igualmente fundamentais para a consecução de uma boa história que se tornam coisa inseparável. E penso também que, como quando diante do passar do tempo, em que, por exemplo, não somos capazes de perceber seu fluxo sem o auxílio de calendários ou retratos, este romance é mais bem compreendido se contemplado frente aos demais projetos ficcionais do autor. Eles eram muitos os cavalos, mas ninguém sabe os seus nomes, sua pelagem, sua origem, assim proclama Cecília Meireles, na epígrafe do primeiro romance de Ruffato. Para mim, resta claro que o norte da bússola artística do autor mineiro, desde os primórdios, aponta para a solidão das grandes cidades e a memória dos que as ocupam e sofrem.

A grande literatura é aquela que sobrevive em qualquer época, assim como também a que nos permite a possibilidade de enxergarmos, nos personagens de um outro, um alguém de nós. Recordo o romance Inferno provisório, que termina com pessoas participando da corrida de São Silvestre, no dia 31 de dezembro de 2002, cena que aponta simbolicamente para o início de uma nova era. Faço isso porque a publicação deste texto coincide com a surpreendente volta de Lula à presidência da República, depois de quatro anos de trevas do governo Bolsonaro. E porque penso que tal acontecimento político permitirá uma inesperada camada interpretativa para O antigo futuro. Temos mesmo o direito de sonharmos tempos melhores? Ou algo está mudando para que tudo continue como está, nos moldes do que proclamou Lampedusa, em O leopardo? Verdadeiramente, uma nova era de alterações estruturais se anuncia? A desigualdade fundante deste país e as tensões que tanto acompanhamos serão mitigadas? Bom, somente o cotejo entre o que virá e os termos de O antigo futuro nos revelará se dias melhores são apenas miragens ou algo a ser mesmo concretizado. De tudo, portanto, resta apenas uma certeza. É preciso dar conta do presente. E, diante de uma obra como esta, a literatura brasileira contemporânea vai muito bem, obrigada.

O antigo futuro
Luiz Ruffato
Companhia das Letras
218 págs.
Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases (MG), em 1961. Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha.
Renata Belmonte

É escritora e advogada.  Autora de três livros de contos: Femininamente (Prêmio Braskem de Literatura, 2003), O que não pode ser (Prêmio Arte e Cultura Banco Capital, 2006) e Vestígios da Senhorita B (P55, 2009) e do romance Mundos de uma noite só (Faria e Silva, 2020).

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