Poemas de Arvind Krishna Mehrotra

Leia os poemas traduzidos "A uma filha que não nasceu", "Borges", "Prejudicial aos versos" e "Pedras da calçada"
Arvind Krishna Mehrotra, poeta indiano
01/04/2022

Tradução: Adriana Lisboa

To an unborn daughter

If writing a poem could bring you
Into existence, I’d write one now,
Filling the stanzas with more
Skin and tissue than a body needs,
Filling the lines with speech.
I’d even give you your mother’s

Close-bitten nails and light-brown eyes,
For I think she had them. I saw her
Only once, through a train window,
In a yellow field. She was wearing
A pale-coloured dress. It was cold.
I think she wanted to say something.

A uma filha que não nasceu

Se escrever um poema pudesse trazê-la
À existência, eu escreveria um agora,
Enchendo as estrofes com mais
Pele e tecido do que um corpo precisa,
Enchendo os versos de fala.
Da sua mãe ia te dar até mesmo

As unhas roídas e os olhos castanho-claros,
Pois acho que eram assim. Eu a vi
Uma só vez, através da janela de um trem,
Num campo amarelo. Ela usava
Um vestido de cor clara. Fazia frio.
Acho que ela queria dizer alguma coisa.

Borges

Before the Ganges flows into the night,
Before the knife rusts, the dream loses
Its crescent shape, before the tiger runs
For cover in your pages, Borges, I must
Write the poem. Insomnia brings lucidity,
And a borrowed voice sets the true one
Free: lead me who am no more than De Quincey’s
Malay, a speechless shadow in a world
Of sound, to the labyrinth of the earthly
Library, perfect me in your work.

Borges

Antes que o Ganges flua noite adentro,
Antes que a faca enferruje, o sonho perca
A forma do crescente, antes que o tigre corra
A se esconder em suas páginas, Borges, devo
Escrever o poema. A insônia traz lucidez,
E uma voz emprestada torna a verdadeira
Livre: conduza-me, eu que não sou mais que o malaio
Em De Quincey, uma sombra sem fala num mundo
De som, ao labirinto da terrena
Biblioteca, aperfeiçoe-me em sua obra.

Bad for verse

Middle age is bad for verse,
Specially for a surrealist.
A loss of vision is a loss of words.

What went wrong? He doesn’t know.
The morning light still falls on leaves.
The man he was died years ago.

Now, sitting in an easy-chair,
He stares at the blank wall in front,
Shading the eyes to cut the glare.

Prejudicial aos versos

A meia-idade é prejudicial aos versos,
Sobretudo para um surrealista.
Perda de visão é perda de palavras.

O que deu errado? Ele não sabe.
A luz da manhã ainda cai sobre as folhas.
O homem que ele era morreu há anos.

Agora, sentado numa poltrona,
Ele fita a parede nua à sua frente,
Protegendo os olhos para abrandar o fulgor.

Paving Stones

“It’s to win your hand”, I say,
as I go down on my knees to
scrub with a wire brush
the paving stones in the garden.

Within seconds you reply,
“You have it already.
Okay, get up.
Here’s my hand.”

As always, you are here
and not here, just as
I’m on my knees, then not
on my knees.

I grab the hand.

Pedras da calçada

“É para conquistar a sua mão”, digo,
enquanto me ponho de joelhos para
esfregar com uma escova de aço
as pedras da calçada no jardim.

Em poucos segundos você responde,
“Ela já é sua.
Está bem, levante-se.
Aqui está a minha mão.”

Como sempre, você está aqui
e não está, assim como
eu estou de joelhos, depois não mais
de joelhos.

Agarro a mão.

Arvind Krishna Mehrotra
Nasceu em 1947 em Lahore, hoje território paquistanês. É um dos mais celebrados poetas indianos que escrevem em inglês, e também ensaísta e tradutor de línguas indianas como o hindi e o bengali.
Adriana Lisboa

Nasceu em 1970 no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente vive nos Estados Unidos. Entre romances, contos, livros infantis e infanto-juvenis, possui mais de dez títulos publicados. Possui três títulos em poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2018 — Menção honrosa no prêmio Casa de las Américas) e Deriva (2019).

Rascunho