Romances de formação — também conhecidos como coming of age ou Bildungsroman — contam histórias de jovens atravessando o limiar para a idade adulta. São, consequentemente, relatos de situações limítrofes, ritos de passagem que envolvem experiências dolorosas e fascinantes, constrangedoras e tragicômicas — em todo caso, inesquecíveis, pois trazem consigo a magia das descobertas, dos aprendizados e da expansão de horizontes pessoais. É o primeiro beijo, a primeira transa, o primeiro amor e a primeira perda. Pela sua própria natureza, são narrativas com forte apelo emocional, propícias a fisgar a empatia do leitor, mas também a fazê-lo refletir, aprender, identificar-se e crescer junto com as personagens. Além disso, por descreverem uma travessia, são textos que funcionam também para adultos, já que a vida é feita de inúmeros ciclos e estamos sempre fechando uns e abrindo outros, como já expressou Hermann Hesse em seu famoso poema Degraus (em tradução de Cila Schulman e que, aliás, daria uma bela epígrafe para o livro):
A cada apelo da vida deve o coração
Estar pronto a despedir-se e a começar de novo,
Para, com coragem e sem lágrimas se
Dar a outras novas ligações. Em todo
O começo reside um encanto que nos
Protege e ajuda a viver.
Outra característica típica deste tipo de romance é a cumplicidade que se estabelece entre leitor e protagonistas. Esta é uma condição sine qua non para que as emoções possam fluir e a vivência das personagens seja espelhada na experiência da leitura. Neste sentido, Gostaria que você estivesse aqui, de Fernando Scheller, parece cumprir todos os quesitos de um perfeito coming of age.
Forma e conteúdo
A odisseia das cinco figuras centrais descreve o caminho de seu amadurecimento e, a julgar pelo retorno que obteve (por exemplo, pelo site Goodreads), o livro produziu forte impacto no seu público-alvo: fez o jovem leitor rir, chorar, torcer pelos protagonistas, querer abraçá-los ou pegá-los no colo. Além disso, provocou surpresa, tirou o sono e, acima de tudo, transformou quem leu o relato.
Parece-me que esse êxito se deve à inteligente e sensível composição do livro, tanto no que tange à forma quanto ao enredo. No plano formal, apesar de ter como cenário a cidade do Rio de Janeiro, o autor segue a estrutura típica de um relato de viagem, fazendo do livro um romance de estrada, sendo que a jornada aqui é transferida para o interior das personagens. Assim, os primeiros capítulos as apresentam no seu dia a dia, do qual são arrancadas por diversos desafios, e, após vencerem obstáculos que as levam a trespassar suas fronteiras pessoais, elas enfrentam provas ao lado de aliados e lutam contra inimigos reais ou imaginários. Até que, por fim, tomam o caminho de volta, por assim dizer, a si mesmas, transformados pela sua trajetória.
Quanto ao enredo, a qualidade se faz pela diferenciada construção das personagens, assim como pelo bem-acabado alinhavo de suas histórias individuais com o todo coletivo: ao longo da década de 1980, as vidas de Inácio, Baby, César, Selma e Rosalvo se entrelaçam tanto umas com as outras como com a história do país e do mundo. Enquanto travam suas batalhas particulares, eles vivenciam as passeatas pela abertura política no Brasil, a passagem da ditadura à democracia, assim como a ascensão e o declínio dos novos movimentos musicais e o advento arrasador da Aids.
O texto é dividido em três partes: Anos inocentes, que cobre os anos de 1980 a 1982; Vida imensa, de 1983 a 1986; e Verões emocionais, de 1987 a 1989.
Personagens ricos
Os anos inocentes começam com a apresentação de Inácio, que fulgurará como uma espécie de elo entre os outros personagens. Desde as primeiras frases (“Era difícil identificar o que de errado havia em Inácio. Com quase dezessete anos, era um rapaz cheio de qualidades que falhavam em formar um todo coeso”) somos colocados diante de uma personalidade complexa porque contraditória. Esse padrão será, aliás, mantido na composição dos outros protagonistas, todos ricos em camadas comportamentais e psicológicas.
Inácio está apaixonado por Baby, mas ela hesita e cede a seus avanços apenas o suficiente para mantê-lo por perto, não se comprometendo para além do que lhe é conveniente, mas sem rechaçá-lo de todo. Também ela é feita de ambivalências: vem de uma família pobre que conseguiu instalar-se na Zona Sul do Rio de Janeiro, mas sofre enormes dificuldades para manter o status, colocando sobre os ombros da filha a responsabilidade de melhorar a situação doméstica. Assim, Baby se vê permanentemente dividida entre a missão de “salvar” a família, casando-se com Otávio, um rapaz rico, ou construir uma vida emancipada com seus próprios meios.
Em seguida, somos apresentados a César, um adolescente bem situado e gay em plena descoberta de sua sexualidade. Apaixonado por música, ele é possuidor de uma bela coleção de discos, alguns raros. E é com a venda de um deles, um vinil inédito do Pink Floyd, que consegue angariar dinheiro para uma visita à Sauna Leblon, onde tem sua primeira relação sexual com um homem, ao mesmo tempo que desenvolve uma amizade com Inácio, apesar de sentir também uma forte atração secreta por ele. A mãe de César, Selma, encontra-se em crise no casamento porque o marido, além de oprimi-la, não aceita a homossexualidade do filho.
Já Rosalvo nos é apresentado como um homem simples que deixa sua família no interior de Minas para iniciar uma nova vida no Rio, para onde vai em busca do assassino de sua filha travesti.
Com o avanço da “viagem”, acompanhamos o entrecruzamento dos caminhos das personagens: Rosalvo se instala na Rocinha, onde começa uma vida nova com Elza e consegue emprego como porteiro no prédio de Selma e César. Porém, ele nunca esquece seus planos de vingança. Selma se separa do marido e vivencia o seu próprio “despertar da primavera”, dedicando-se ao trabalho e ao filho. Inácio e César fortificam seus laços, enquanto Baby se vê cada vez mais dilacerada entre a obrigação perante a família e o anseio de liberdade.
Desenvolvimento
Ao fim da primeira parte, temos a típica ciranda amorosa: César se apaixona por Inácio, que é louco por Baby, que se sente pressionada a casar-se com Otávio. Paralelamente, a lente vai sendo aberta para o total e vemos o surgimento das bandas musicais dos anos 1980, o crescimento do movimento Diretas Já, a maconha “da lata” que aporta no Rio de Janeiro e os homossexuais do mundo inteiro sendo acometidos de uma misteriosa doença que os leva a morrer em massa.
Em Vida imensa, segunda parte da obra, os personagens darão os passos decisivos que formarão o alicerce de suas vidas adultas: César vivencia a ascensão como produtor musical e, ao mesmo tempo, o declínio de sua saúde, espelhando o surto mundial da doença. Inácio, que de início trabalha com o amigo, estuda Jornalismo e torna-se crítico de música de um grande jornal, enquanto Baby foge para São Paulo e Rosalvo, cada vez mais ajustado à sua vida pacata, parece enterrar os planos de vingança do assassinato da filha.
Na terceira parte, depois de as vidas de todos sofrerem algumas reviravoltas das quais saem transformados, o ciclo se fecha: como no início do livro, é novamente réveillon e Inácio está na praia de Copacabana, dez anos mais tarde. Ele junta cartões-postais espalhados pelo vento, escritos próprios e mensagens enviadas por seu amigo, memórias das “histórias interrompidas que somos”, que ele precisa resgatar antes de “tudo o que estava por vir, todos os anos que se empilhariam”.