Caos é aquilo que a gente não entende

A boa loucura que ronda o uso de solilóquio, discurso indireto livre, monólogo e fluxo da consciência
01/06/2009

A confusão é geral. Ninguém se entende. Solilóquio passa por monólogo, monólogo vira fluxo da consciência, fluxo da consciência se perde num emaranhado de definições, indefinições, buscas e encontros, tudo isso formando um universo de certezas e convicções, de equívocos, de risos e trapalhadas, e, o que é justo, todo mundo tem razão. Cada qual com seu cada qual. Num mundo de pós-modernidade, é o que dizem e asseguram, a verdade — sem discussão filosófica — não é terreno privado de ninguém. Por isso mesmo vale um debate de letrinhas. Dois pra lá, dois pra cá, vai começar a festa. De caos em caos, a literatura enche as páginas.

É comum encontrar pessoas chamando de monólogo o famoso solilóquio do “ser ou não ser, eis a questão” do Hamlet, de Shakespeare. Não pode ser — ali há um solilóquio, e o solilóquio é matéria do teatro, nasceu com o teatro, vive com o teatro. Brilha no palco. Ou no cinema. Solilóquio é uma conversa íntima e interna de personagem para personagem, dele para ele, pedindo ouvido e colo, dirigido à platéia. Uma conversa para o horror da alma mesmo e com a esperança de que alguém o escute. Isso é fundamental. É básico. Assim, sem tirar nem pôr: sem ouvido não há solilóquio. Por isso deve ser lógico, coordenado, organizado. Pode estar no romance, na novela, no conto. Como técnica, sim. Hamlet:

Ser ou não ser — eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias —
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso.

Se alguém gosta de monólogo, às vezes, monólogo interior, então tudo bem. Chame-o como quiser. Tratando-se, portanto, de uma técnica, não deve ser lei nem regra. Mas se for possível consultar uma gramática que tem área para a estilística, pode-se observar com clareza: solilóquio é diferente de monólogo. E bem diferente. Só mais uma coisa: no solilóquio o personagem está sob o domínio do narrador, feito ventríloquo. No monólogo o personagem tem liberdade. Está livre de tutela ou de comando. Fica só, sozinho, somente. É tresloucado.

O monólogo é completamente diferente do solilóquio, pois sim. É típico da prosa de ficção. Sabe por quê? Porque não exige o ouvido, não pede o testemunho de ninguém. E como não pede ouvido nem o testemunho de ninguém não precisa ser organizado, coordenado, lógico. Precisa de olhos, feito namoro e paixão. E, é claro, de mentes. Basta uma olhada no Ulisses, de Joyce. E, brasileiramente, do monólogo de Autran Dourado, em A barca dos homens. É fácil perceber que o pensamento do personagem não segue nenhuma direção lógica. Desaparece, muda de rumo, some. Faz caminhos nunca dantes navegados, com a licença de Camões.

Um exemplo de monólogo, em Ulisses:

E um desses espartilhos ajustadinhos eu queria anunciados como baratos na Fidalga com nesgas elásticas nas ancas ele endireitou o que eu tenho mas não é bom que é que eles dizem eles fazem uma deliciosa silhueta.

E o fluxo da consciência? Aí, camarada, a porca torce o rabo, a vaca tosse e arara canta. Tudo trancado num quarto escuro, apertado e sem janelas. O solilóquio é lógico? Sim. O monólogo é ilógico? Sim. E o fluxo da consciência é o quê? Não é também ilógico? Sim, mas tem um passo adiante, é só enfiar os olhos no papel. O narrador precisa encontrar o inconsciente do personagem e expressar os pensamentos, a mente desorganizada e revelar barulhos, confusões, lembranças, memórias, tudo numa rapidez impressionante, sem atropelos mas com estrutura inimitável. A ilógica do monólogo é pouco, precisa ir até às aliterações, às rimas, ao jogo interno das palavras inteiras, cortadas, unidas, desfalcadas. É inimitável, também segundo Autran Dourado, que é exigente:

O que é importante no stream-of-consciousness de Finnegans Wake é a sua mudança de ritmo. As elipses, os lapsos, as aliterações, são o que fazem da obra final de Joyce uma obra maior do nosso tempo… Confundi-lo com estilo indireto livre ou o solilóquio é um erro de conseqüências fatais para quem o pratica.

E com o monólogo também. O exame continua com este exemplo de Joyce, tão diferente do monólogo. Vejam bem:

Salamangra! Ai, ai, ai! Cheridas gênias, figatrifutrem-se! Ri eu, ri Ana. Wallenton. Essa foi a primeira putada de Wellenton, taco a taco. Hi! Hi! Hi! Este sou eu, Belchum com suas borrachosas de doze éguas chuá, chuá, chuá…

Há também autores que procuram o fluxo da consciência a partir do monólogo. É claro: todo monólogo leva ao fluxo, mas nem todos sabem disso. Não é um desinformado; apenas não se preocupou com isso e tem toda razão: ficção é um ato individual e o autor pode ou não se tornar senhor de sua criação, sem qualquer conhecimento técnico. Outros conhecem o terreno em que pisam. Basta ver o caso do paraibano Rinaldo de Fernandes, em Rita no pomar, um romance e tanto. Ali o monólogo vai pouco a pouco cedendo espaço ao fluxo, porque a confusão mental procura a rapidez e, na rapidez, encontram-se os barulhos, os ruídos, as aliterações já assinaladas.

O que há, ainda, é uma pequena confusão: há o fluxo da consciência na psicanálise, amplamente usado na literatura. Tudo bem. É um direito do escritor e um direito do crítico. Pode e deve ser usado. Mas em se tratando de literatura, deve-se usar a técnica criada e desenvolvida por Joyce. Costumo mesmo dizer, e até por brincadeira aos meus alunos da Oficina de Criação Literária que tudo pode e nada pode, depende de quem escreve. O que é correto é que a literatura precisa celebrar as suas conquistas e ir adiante com elas. Sem censurar qualquer pessoa, no entanto. Como já disse, no outro parágrafo, Rinaldo usa um fluxo da consciência excelente, que é tratado como monólogo. São coisas bem diferentes. Começa monólogo, é verdade, mas quando o autor paraibano usa as aliterações e as rimas, por exemplo, sai de um campo para outro, e avança. Avança muito. Numa técnica bem pouco explorada e, segundo Autran Dourado, inimitável. Rinaldo não imita. Cria a sua própria técnica, usando os elementos próprios da técnica em debate.

Sem esquecer, ainda, que o fluxo começa a nascer com o discurso — diálogo — indireto livre, criado e também usado por Flaubert, porque esse tipo de técnica representa mesmo uma espécie de conversa entre o narrador e o personagem, sem qualquer sinal de intervenção, além da mudança do tempo verbal. Exemplo:

Maria não vai ao cinema, porque não quer sair com o namorado.

É só prestar atenção. O narrador diz: “Maria não vai ao cinema”, mas é a própria Maria quem afirma “porque não quer sair com o namorado”. A mudança do tempo verbal é bem clara: “não quer”, ao invés de “não quero”. Se deixar “quero”, transforma-se em diálogo indireto, com muita clareza. Por quê? Porque a voz de Maria fica muito clara, muito objetiva, e não esconde, porque assim dizer, a resposta da personagem. Depois desse discurso indireto livre, vem a criação do monólogo, que não começa com Joyce, mas com Eduard Djardin, escritor francês do século 19, e muito pouco publicado no Brasil. Há edições esparsas aqui e ali. Joyce percebeu o caminho, aprofundou o monólogo e voou para mais distante ainda criando o fluxo da consciência. O solilóquio, porém, é mais antigo, bem mais antigo, e foi mais usado por Shakespeare, sobretudo naquele exemplo já citado. Um caminho objetivo: Solilóquio, discurso indireto livre, monólogo e fluxo da consciência. Mario Vargas Llosa avançou com os monólogos entrecruzados, o que também é uma novidade, a partir de A casa verde e chegando à sua sofisticação em Conversa na catedral, que entrecruza várias narrativas e usa esses monólogos entrecruzados.

Esses são os caminhos que devemos ou não percorrer. Uma questão de preferência ou de liberdade. Pura liberdade para quem quer criar asas. Cada um entende à sua maneira. E cada um tem razão. No campo criativo não há verdades absolutas. Ou permanece a pergunta: Caos é aquilo que a gente não entende? Não custa ouvir, mais uma vez, Autran Dourado: “Na verdade, confesso humildemente, não consigo entender”. Está aberta a temporada de debates. Para nossa sorte.

NOTA
A coluna de Raimundo Carrero é publicada originalmente no jornal Pernambuco, de Recife. A republicação no Rascunho é uma parceria entre os dois veículos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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