🔓 O fantasma de Jacques Derrida

Em um café, surge a imagem do filósofo francês, para quem Karl Marx está morto, mas seu espírito segue clamando por uma existência humana com dignidade
Ilustração: Eduardo Mussi
27/02/2022

A tua piscina tá cheia de ratos.
Cazuza

Havíamos marcado num café. Antes da loucura do confinamento, quando um simples encontro não dependia de um aparato de guerra, ela nunca se atrasava. A última vez que nos vimos foi há dois anos. Pouco mais, pouco menos. Lembro bem: a luz era tanta que, mesmo de óculos escuros, tateávamos em busca um do outro, rindo de quase tudo, quase todos. Não nos importávamos com o calor. Avançávamos orgulhosos pela Avenida Sete, nossas camisetas pretas como bandeiras no colorido áspero da multidão, os rostos iluminados de suor e alegria, enquanto a música rolava doce nos fones de ouvido que amigavelmente compartilhávamos. Na praça do poeta, com os cotovelos apoiados na balaustrada, ela expelia sua fumaça sobre os tetos dos casarios e da velha igreja. Mas, hoje, uma cortina pálida encobre o céu, as ruas canalizam ferrugem no ar, o abafamento é maior fora do que dentro do café.

Quando chegou, os olhos estavam vermelho de choro. Pediu-me desculpas pelo atraso, o corpo a um braço do meu. Por instantes, ficamos sem saber o que fazer nem dizer, apenas olhamos um para o outro e admiramos o quanto estávamos diferentes e o quanto, apesar de tudo, nos mantivéramos paradoxalmente os mesmos. Emily encobria os cabelos negros com um lenço; no queixo, um laço com nó de pontas simétricas. Usava uma camisa de algodão sem mangas, as duas letras símbolos da Jato Invisível (uma das bandas que mais amamos) estampadas no peito, jeans claros e botas cano longo. Certamente, por trás da máscara, os lábios estariam tingidos de roxo ou preto. Sem mais me conter, abracei-a, abraçamo-nos.

Perguntei se ainda estava sentida com o Hernán. “Por causa disso?”, apontou em direção ao rosto. “Não, bebê. Ele não merece.” Pedimos dois frappuccinos e ela me contou que se sentira emocionada ao sair do seu edifício, perto do Relógio de São Pedro, e, enquanto caminhava ao meu encontro, percebera o violento aumento de pessoas vivendo nas ruas. Eram pessoas de todas as cores e idades, muitas abrigadas por frágeis caixas de papelão. Pensou no limite tênue que os separava de nós. A garçonete pôs nossas bebidas no balcão, saudou nossa volta ao estabelecimento e saiu. Emily pegou um guardanapo e secou os cantos dos olhos. “Então, você chorou pelos sem-teto”, concluí pesaroso. “Não, querido, eu chorei por todos os homens e mulheres que, iguais a mim, iguais a você, passavam ao redor daquelas pessoas e prosseguiam em suas rotinas, muitos deles cegos. Chorei pelo superavit das instituições financeiras, suas carteiras de crédito bilionárias, pelo fracasso da ONU, pelo marketing agressivo de cada dia, pelas festas do Neymar, pela supremacia do entretenimento barato, por nossa anestesia geral e todas essas merdas a que nos acostumamos.” Ela fez uma pausa, deu um gole no frapê e acrescentou com suavidade: “Mas e você, meu querido, reuniu forças para voltar a escrever?”

Conversamos por mais alguns minutos. As taças ainda estavam pela metade quando ela pediu licença para ir ao banheiro. Enquanto estava só, recordei do tempo quando cursamos mestrado juntos. Numa aula, debatemos um texto de Jacques Derrida, o filósofo da Desconstrução, feito inicialmente para uma conferência na Universidade da Califórnia em 1993. Grosso modo, ele partia da definição do ser humano como “o espírito do espírito” (algo que interpretei como a chama das ideias a representar a identidade de um indivíduo e instituir sua(s) imagem(ns) — espectro(s) — perante os demais), firmada por Valéry, e a associava à dignidade que, no dizer de Kant, se elevava acima de toda economia, de todo valor comparado ou comparável, de todo preço de mercado. Uma dignidade que só se realiza no compromisso de justiça para com todo ser vivo.

Derrida afirmava que Marx (e eu tomo a liberdade de acrescentar os nomes de Antônio Conselheiro, Proudhon, Pagu, Oscar Wilde, Roberto Piva, Emma Goldman, Bakunin, Jesus Cristo e Allen Ginsberg em meio a uma longa lista de revolucionários) estava morto, mas seu espírito não. O espírito de Marx, tal qual o espectro do rei Hamlet (que, na peça de Shakespeare, cobra justiça ao filho, o príncipe Hamlet, por seu assassinato), clamava por uma existência humana com dignidade. Não se tratava de uma defesa de teorias para se justificar tomadas de podres poderes ou a adoção de modelos fracassados sob velhas alcunhas, mas a insatisfação viva com o estado das coisas hoje e a busca por novas soluções: o espírito.

Emily retornou e se sentou ao meu lado. Terminamos nossas bebidas e, antes de nos despedirmos, ela puxou mais um guardanapo do recipiente no balcão e enxugou os cantos dos meus olhos.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho