🔓 Um amor sem fronteiras

O esperado encontro amoroso é atrapalhado por um vício de odor desagradável
Ilustração: Carolina Vigna
31/10/2021

O que aconteceu foi o seguinte, respondeu Emily no telefone. Por maior que fosse minha curiosidade em saber como se dera o encontro com seu admirador, o professor uruguaio, atravessei o mês inteiro sem incomodar minha amiga, aguardando monasticamente que ela pusesse a cabeça para fora da toca, que lançasse seus sinais de fumaça da janela do seu apartamento em direção à minha.

Não sou de pegar ninguém em aeroporto, continuou ela, mas Hernán foi tão compreensivo com a história do pseudônimo! Quinze minutos antes do horário previsto para a chegada do voo, eu já estava lá. Uma eternidade. Depois de meia hora, um café e dois cigarros, ele ultrapassou os portões do desembarque. Eu estava lendo e não o vi. Tomei um susto ao ouvir dizerem meu nome. Ao vivo, sua voz era diferente. Tinha umas farpas, uma vibração metálica. Em compensação, achei-o ainda mais bonito do que na tela do computador. Os cabelos muito pretos e lisos e um lindo lenço esmeralda envolvendo o pescoço. Só de falar para você, recordo com nitidez da imagem.

Vocês se beijaram neste momento?

Não. Apenas nos abraçamos. Eu estava nervosa. Guardei o livro na bolsa e providenciamos uma condução para nos levar ao hotel onde ele passaria a semana.

Entendi. Mas e no carro, no caminho, rolou um amasso, um beijinho?

Também não. Embora não fosse muito jovem, ele me pareceu tímido. Além do mais, disse que precisava responder umas mensagens de trabalho. Passou a viagem quase toda teclando no celular.

E o que você fez? Não protestou? Não cobrou atenção?

Eu tirei meu livro da bolsa e continuei a leitura da página onde havia parado. De vez em quando espiava ele de canto de olho.

Que coisa! Mas, chegando no hotel, vocês…

Ele subiu sozinho com os pertences. Quis tomar um banho. Eu fiquei esperando no saguão.

Lendo?

Evidente.

Você é incorrigível, Emily.

Era um livro magnífico. Se não conhece, corra atrás. Chama-se Raras: ensayos sobre el amor, lo femenino, la voluntad creadora, da Brenda Ríos.

Me empresta depois. Conte logo que diabos houve entre você e Hernán, se ficaram ou não.

Oquei. Após tomar o banho, ele desceu do quarto e me convidou para uma caminhada na praia. O hotel fica à beira-mar.

Eu sabia!

Caminhamos lado a lado por alguns metros. Ele parou de repente e se virou bem de frente para mim. Eu senti que seria aquele o momento e avancei para beijá-lo, mas Hérnan me evitou e, constrangido, disse que tinha algo importante para me dizer. Ele era um ex-fumante e não desejava, de maneira alguma, manter uma relação amorosa com uma pessoa que, em pleno século vinte e um, tivesse um vício tão autodestrutivo. Vendo meu espanto, pediu desculpas pela situação delicada que nos encontrávamos. Porém, ressaltou que não seria honesto esconder sua indignação por eu nunca ter comentado nada a esse respeito antes, confessando que, com muita dificuldade, suportara o odor de nicotina que exalava de mim. Por fim, disse que por muito pouco, não retornou do aeroporto para casa, mas achou absurdo perder o dinheiro gasto com o hotel.

Punk demais, amiga.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho