Poemas de Ivan Junqueira

Leia os poemas "Dois gatos", "Elegia diante da catedral", "Soneto inesperado", "Soneto de sempre", "Manhã pluviosa", "Vestígio da infância"
Ilustração: Carolina Vigna
01/11/2021

Quando faleceu no Rio de Janeiro em julho de 2014, o poeta Ivan Junqueira deixou entre seus guardados, no apartamento no Leme, uma pasta amarela com 36 poemas inéditos, escritos entre 1954 e 1958, e os três últimos, criados pouco antes de morrer, quando estava com 79 anos.

O conjunto de 36 versos pode ser considerado o que costuma ser chamado de juvenília, já que Ivan Junqueira nasceu em novembro de 1934. Teria, aos escrevê-los, portanto, de 20 a 24 anos. Organizados e digitados com esmero, contendo título e sumário, tudo indica que o poeta finalmente havia decidido publicá-los. Por isso, sua mulher, a escritora e jornalista Maria Cecilia Costa Junqueira, e a filha mais velha, Suzana Junqueira, resolveram divulgá-los ao público, acreditando que deverão auxiliar a quem quiser fazer um estudo da obra completa do bardo carioca. Quem se debruçar sobre seus versos há de verificar, por exemplo, que, desde o início de seu caminho literário, os temas tratados são praticamente os mesmos: a relação visceral com a morte; o lamento da perda da infância, o clamor contra as injustiças e o respeito quase que religioso pelo mistério da vida. Quanto ao estilo, foi ficando cada vez mais rigoroso.

Na Poesia completa editada em dezembro de 2019 pela Glaciar, de Portugal, já foram publicados 10 poemas dessa juvenília. Fazem parte do livro também as seguintes obras poéticas: Os mortos; Três meditações na corda lírica; Opus descontínuo; A rainha arcaica; Cinco movimentos; O grifo; A sagração dos ossos; O outro lado e Essa música.

A editora Flávia Portella, da Lacre, pretende lançar se possível em 3 de novembro, data de aniversário de Ivan Junqueira, todos os 36 poemas dos vinte anos, além dos três do último ano: Dois gatos, Pombo e O preço. A ideia é publicar os versos juntamente com os desenhos também inéditos do poeta.

Dois gatos

1
Eram dois gatos num só
a se esfregarem no pó

das velhas tábuas do assoalho,
rente às brasas do borralho

de uma lareira sem dono,
no fluido limiar do sono.

Era um gato e eram dois,
mas só se os viam depois

que um se escondia na pele
do outro e abandonava a dele,

como quem sai de si mesmo
e, passo a passo, anda a esmo,

sem destino, alheio à sorte
do que seja a vida e a morte.

Eram dois de olhos azuis
quais turquesas, e um capuz

que a cabeça lhes cobria
com egípcia simetria,

de uma orelha a outra orelha,
de uma a outra sobrancelha.

E lembrem-se o rabo e as patas
de cores gêmeas, exatas.

Se um sumia, o outro miava
em, num átimo, o encontrava

sob os degraus de uma escada
que subia rumo ao nada.

Jacó e Esaú: lhes deram
esses nomes que não eram

senão o dilema arcano
do rosto de um deus romano.

Nunca foram, pois, iguais,
e disso havia sinais

em todo e qualquer detalhes,
não de postura ou de talhe,

mas de índole e de aspecto:
um, esquivo e circunspecto,

o outro, terno, mais afeito
a quem o punha no leito.

2
Foi-se a areia da ampulheta,
foram-se os tons da palheta

que davam cor à façanha
de um só ser dois nessa estranha

aptidão de duplicar-se
sem artifício ou disfarce.

E hoje ainda me pergunto
quando me toca esse assunto:

seria mesmo um só gato
que se expandia em dois no ato

de ludibriar os que os viam,
ou eram ambos que urdiam

uma única criatura
em que tudo se mistura?

Elegia diante da catedral

Ante meus olhos fatigados, a torre da catedral
se arremessa como um espasmo de pedra
dilacerando o tédio secular do infinito.

(em torno, o vento inventa polifonias agudas
e o mar escorre soluços em suas guelras de água.)

De repente, o vento o céu a tempestade.

Ah, de repente aquele anjo pleno de piedade
a chorar melancolicamente
sobre os destroços da criança que eu fui.

Soneto inesperado

E os tímidos afagos, de repente,
eternizaram Bach sobre o teclado
da forma que, num gesto indiferente,
rasgava o azul do céu desacordado.

Foi quando, à chama incerta de uma ardente
ternura e de um encanto inesperado,
se ergueram vozes claras no imanente
silêncio de meu ser atormentado.

Depois, como no seio impenetrável
da noite se ocultasse a minha errante
vivência de amargura interminável,

cuidei se me ficasse aquele instante
de afagos mergulhado na imutável
tristeza de meu cântico inconstante.

Soneto de sempre

Do meu amor, outrora uma aventura
feita de graça e de sorriso tanto,
resta-me apenas, na memória impura,
lembrança esparsa e vago desencanto.

Hei de aos meus versos conferir, no entanto,
Tamanhas ânsias de imortal ternura,
que em face deles, como por encanto,
em lírios se transforme a desventura.

Não quero agora, findo este lamento,
deixar que o meu amor, num derradeiro
adeus, se me abandone o pensamento.

O que mais quero é o meu amor inteiro,
pois é na sua lei que o sentimento
dá-se a si mesmo — imenso e verdadeiro!

Manhã pluviosa

O céu acordou chorando:
feita de névoa e frieza,
uma vaga tristeza
em meus ossos foi rolando.

Vestígio da infância

Há um vestígio de infância nos teus gestos,
nas tuas zangas sem razão,
no teu sorriso de bruma distraída.
Há, enfim, um vestígio de infância até
nas mínimas coisas que pensas
e que eu, mortificado, já não penso mais.
Por isso, deixa, imploro-te, adormecida
a tua mão sobre os meus olhos.
Como vês, eles estão sujos,
Imensamente sujos e doloridos.
Retira-lhes este espesso véu de lama
que tudo distorceu e tudo fez perdido.
Livra-os desta mortalha onde esculpiram
os últimos protestos do amor assassinado.
Revolve bem as águas turvas de meu pranto:
verás que nelas, frágil namorada, também cintila
um pequenino e melancólico vestígio de infância.

O assassinato do Natal

Este ano Papai Noel desceu,
modernamente de helicóptero
na praça do Congresso.
Chovia um pouco,
e nenhum sol havia,
nem poesia,
naquela extravagância hodierna.
Mas as crianças, alegres,
se acotovelavam e se empurravam
querendo ver Papai Noel.

(A nossa polícia,
como sempre amável,
rapidamente estendeu
seus humanitários cordões de isolamento:
as crianças, é claro, podiam estragar tudo.)

Papai Noel distribuiu
raros presentes para aquela
imensa multidão esfaimada.
Um presente para cada trinta crianças,
ou algo assim.
Como seria de prever, pais e mães brigaram,
se esbofetearam e ferozmente se odiaram
na disputa encarniçada dos brindes.

Papai Noel e seus auxiliares sorriam,
empanzinados de sadismo,
enquanto lá em cima — no céu — lamentava-se
o assassinato do Natal.

Toma dos meus olhos

Toma dos meus olhos
Sepulta-os em terra estéril,
atira-os à secura do deserto,
lança-os à escuridão da noite.
Meus olhos estão cansados de sonhar,
meus olhos estão cansados de não ver nada.

Toma dos meus olhos, disse-me um jovem.
Planta-os em terra fértil,
faze deles um hino de amor,
constrói com eles um novo mundo.

Meus olhos não se cansam de sonhar,
meus olhos ainda não viram nada!
Os olhos do velho secaram, morreram.
E os olhos do jovem germinaram, viveram.
E assistiram ao que os olhos do velho sonharam,
mas não viram…

Silêncio

Silêncio
Dormência extática em teus olhos claros,
serenos.
E em tua voz ausente,
silêncio
somente.
Silêncio em tudo o que te cerca,
como se fora um véu
diáfano.
E eu quisera tanto dizer-te que…
Silêncio
sem fim.

Silêncio:
Deixa apenas que este verso exale
O infinito canto das montanhas adormecidas.

Alguma coisa

Alguma coisa se perdeu,
alguma coisa inestimável,
pura e bela,
como a poesia adormecida
entre os cabelos ardentes do sol.

Alguma coisa se desfez
nas turbulentas águas turvas
do obscuro rio da verdade.

Pássaro de luz

Tua imagem perfura a madrugada como um grito
e mergulha nas águas sonâmbulas do meu pensamento
em busca da ternura que a noite estrangulou.

(eu te observo encoberto pelo reflexo grisalho do tempo)

Em breve a aurora incendiará os teus cabelos
Onde flutuam os sonhos do menino que inventaste
Tua ausência não será mais o embrião de minha angústia,
nem a chuva fecundando as florestas do meu desespero:
te converterás em essência poética de minha verdade
e rasgarás a treva dos séculos como um pássaro de luz.

Ivan Junqueira
Tradutor, ensaísta, jornalista e acadêmico, o poeta Ivan Junqueira nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1934. Autor de mais de 40 livros, recebeu por cinco vezes o prêmio Jabuti. Suas principais traduções foram As flores do mal, de Charles Baudelaire, toda obra de T. S. Eliot (poemas e ensaios) e a poesia completa de Dylan Thomas. Entrou para a Academia Brasileira de Letras em 2000, tendo ocupado a vaga de João Cabral de Melo Neto. Quando morreu, em 2014, foi substituído na cadeira 37 pelo poeta Ferreira Gullar, morto em 2016. Hoje, esta cadeira é ocupada pelo historiador Arno Wehling.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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