O primeiro sentimento que me veio à cabeça ao iniciar o romance Garota, mulher, outras, de Bernardine Evaristo, foi o de estranhamento. O capítulo inicial, cujo título é Amma, mostra, antes de a narrativa começar de fato, um numeral, indicando, o que se confirma depois, uma divisão. Na sequência vem a prosa, só que registrada em versos, digamos assim:
1
Amma
está andando pelo passeio do canal que divide a cidade, algumas barcaças navegando lentamente nas primeiras horas da manhã
à esquerda está a passarela de inspiração náutica com tábuas estilo convés e torres tipo mastros
à direita está a curva do rio que se volta para o leste depois da ponte de Waterloo em direção ao domo da catedral St. Paul
ela sente o sol começar a se erguer, no ar ainda há uma brisa antes de a cidade ficar entupida de calor e fumaça
uma violinista toca alguma coisa devidamente inspiradora mais adiante no passeio
a peça de Amma, A última amazona do reino de Daomé, estreia no National Theatre esta noite.
O que é isso? Estamos em Londres? Que imagens são essas? Amma é dramaturga? Uma prosa em versos? O meu espanto era justificável, havia descobertas a serem feitas. Ao final da narrativa, contracapa sendo fechada, o meu pensamento mantinha o sentimento de surpresa, mas por outro motivo. Ou melhor, por uma certeza: eu acabara de ler um romance genial.
Doze histórias
Garota, mulher, outras apresenta a história de 12 personagens negras. São 11 mulheres e uma pessoa não binária, de gênero neutro. Sim: não binária de gênero neutro — que, resumidamente falando, não se identifica nem como homem e nem como mulher. Salta aos olhos, portanto, a escolha feita pela autora — ela mesma uma mulher negra — sobre o que contar. As histórias narradas no livro estão diretamente conectadas ao tempo presente, visto que grupos minoritários política e socialmente têm obtido espaço no debate público.
Complexidade é a palavra que escolho para definir o livro. Ao retratar 12 histórias, contadas em quatro das cinco partes que compõem o romance, Garota, mulher, outras nos conduz a caminhos por vezes raivosos, por vezes tristes, contraditórios até, mas que, no fim das contas, são o que são porque a realidade se apresenta. A obra de Bernardine Evaristo é um mundo.
Não parece haver uma protagonista, mas Amma, a mulher de quem a vida abre o livro, é usada quase como um elo. Já na casa dos 50 anos, lésbica, negra, vinda da periferia de Londres, a dramaturga irá estrear a peça A última amazona do reino de Daomé, escrita e dirigida por ela. Iniciamos sabendo da ansiedade dela quando da primeira noite do espetáculo. Narrada por uma terceira pessoa, quem nos conta o enredo volta ao passado de Amma, relatando as descobertas da juventude, o nascimento da filha Yazz, as lutas contra o sistema, o feminismo negro. E tudo por meio de prosa em verso, dando um ritmo impactante ao que é exibido por meio das palavras, fazendo da leitura um deleite em meio a um alerta: é importante desfrutar, mas entender que o que temos ali são as histórias de pessoas negras que vivem em um mundo racista.
Quando a peça está para começar, o primeiro capítulo se encerra. O seguinte trata sobre Yazz, filha de Amma. Ela nasceu porque a mãe, ao decidir ter uma criança, convidou um amigo homossexual para doar esperma. Na casa dos 20 anos, negra, militante, há nessa personagem um quê de rebeldia, uma relação diferente com feminismo, mostrando conflitos geracionais entre mãe e filha. Embora estejam do mesmo lado da luta, digamos assim, elas têm visões diferentes. São dois seres humanos. Dois seres complexos.
Siga o fio
As tramas, a partir daí, seguem uma espécie de fio. A voz que conduz a narrativa nos mostra mulheres como Dominique, Carole, Hattie, Penélope e Shirley. Elas são ou parentes ou amigas ou conhecidas de amigas. Dominique, por exemplo, construiu uma relação de amizade com Amma ao longo da vida. Quem nos conta a história diz que ela e a dramaturga ficaram um tempo longe porque a primeira se mudou para os Estados Unidos quando conheceu Nzinga, uma mulher negra que a mantinha em uma espécie de relacionamento abusivo, não querendo que ela tivesse contato nem com pessoas brancas, nem com outras mulheres.
vai ser um despertar feminista do seu novo eu, Nzinga explicou, ter um nome mais apropriado que Dominique
eu gosto do meu nome
então fique com ele, vou te chamar de Soujourner de qualquer jeito, queriiida.
Contemporâneo dos bons, o romance crê na capacidade cognitiva de quem segura o livro nas mãos. Os diálogos são construídos, quase em sua totalidade, por meio de discurso direto livre. Às vezes há um verbo dicendi. Em outras, é só o pensamento da personagem. Também esqueça pontos finais e outras marcações.
Ganhador do Booker Prize 2019, eleito pelo jornal The Guardian como o romance da década, tendo recebido críticas elogiosas na imprensa internacional e brasileira, Garota, mulher, outras será lembrado pela inovação da narrativa, pelas histórias contadas e pelas viradas surpreendentes.
Múltiplas
Doze personagens negras representam as diferenças, mostrando que um termo como “personagens negras” não representa homogeneidade. Há quem milite, há quem não milite, há que use droga, há quem seja careta. Carole, por exemplo, é uma funcionária de um banco que ganha bem. Mulher negra, ela não se importa ou não quer fazer da vida dela uma luta pelo movimento negro. Quer uma vida estável, isso sim, após um trauma na adolescência: um estupro. Não ser militante, por outro lado, não significa conviver com o racismo.
Há a história de LaTisha, que não conheceu o pai biológico e se viu abandonada, junto com a mãe, pelo pai adotivo. Aos 19 anos, ela já tinha dois filhos de pais diferentes. Mesmo com tudo agindo contra, LaTisha, em um determinado momento da vida, decide mudar. Vai estudar. Quer ter outro futuro. Penélope, por sua vez, é a diretora da escola de Shirley, que deu aula para Carole. A mãe de Shirley, Winsone, teria tudo para passar imune pela narrativa, não fossem os desejos sexuais dela por uma pessoa próxima.
Chamou minha atenção também a história de Megan, pessoa não binária e de gênero neutro. Para além do que ela viveu, a própria narração busca ser respeitosa, não preconceituosa. Nesse capítulo, a palavra utilizada para se referir à personagem é “elu”, numa tentativa de deixar o pronome neutro. Funcionou. A avó de Megan, Hattie, é outra grande personagem. Aliás, digite Hattie no Google e voilà.
Passadas as 12 personagens, vamos ao final do livro, a festa pós-espetáculo, que foi um sucesso. Há um pouco de tudo ali, vaidade, drogas, frustração, felicidade, histórias. O último capítulo é um prólogo surpreendente. Bernardine Evaristo amarra todas as pontas. Não fique surpreso, portanto, se você se levantar e bater palmas para o livro. Garota, mulher, outras, merece isso e muito mais.
O romance é um dos poucos da literatura contemporânea em que o destaque dado na capa se sustenta. “Brilhante, inventivo” são os adjetivos dados pelo jornal The Sunday Times. Não há como discordar.